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terça-feira, 4 de agosto de 2015

Choro



Acordou aquele dia sem querer acordar. Seu subconsciente estava cheio de memórias recortadas de vidas que não eram suas, de agonias que não eram suas, de pensamentos que não eram seus.

Ou eram?

No momento em que assim os sentiu, tornaram-se seus. Permitiu que grudassem em seu peito tal como chiclete mascado em cabelo de criança - ou pior, visto que impossível de cortar fora.

Sua vida parecia-lhe feita de fragmentos de papel colorido embolorado colados uns aos outros com fita-crepe vermelha. Pedaços desconectados de uma personalidade fraturada, metáforas irônicas de carne-e-osso-e-sangue. Sensações disparatadas, razões desatinadas, emoções muito bem mal acabadas.

Levantou-se a contragosto e acendeu um cigarro. Há tempos não fumava pela manhã, mas talvez isso a ajudasse a organizar os pensamentos.

Ou não.

Não queria chorar. Não devia. Não havia porquê.

Chorou. Chorou um mundo de vivências que eram suas e não eram. Chorou o desconforto vindo do saber-se existir. Chorou o desabafo silencioso da dor e da delícia de ser gente e perceber-se vivo.

Soube então que as lágrimas não eram fraqueza. Eram força. Força líquida e concentrada que transbordava e escorria e fazia-se presente no mundo das coisas essencialmente indescritíveis e que a tristeza era parte do ser feliz.

Sorriu.

E foi ser feliz.

terça-feira, 5 de março de 2013

Esperando o ônibus

Esperando o ônibus, Cecília acendeu um cigarro. Sabia que não devia, que custava caro, que o benefício era nenhum. Mas, ainda assim, acendeu-o e tragou-o profundamente, mentindo para si mesma que seria o único.

Cecília esperava o ônibus como esperava a vida.

Não que não fizesse planos, ah!, como os fazia. Se fizesse uma lista de todos os objetivos que já tivera na vida seria preciso que uma floresta inteira fosse feita papel para abrigar seus sonhos em tinta. Planejara viajar, estudar culturas exóticas, conhecer outras civilizações, escrever um livro, ser atriz, tocar piano, ser professora, falar russo, aprender física quântica, plantar uma árvore e até casar-se e ter um filho. Planejara tantos caminhos, tantas promessas, tantos sonhos!

Mas era muito fácil imaginar. Sempre tivera uma imaginação fora do comum. Gostava de criar mundos fantásticos e realidades alternativas para passar o tempo. No plano das ideias tudo era sempre tão colorido, mágico, bonito! Bastava colocar os pensamentos em prática, porém, para que o ímpeto inicial se desvanecesse em uma nuvem cinzenta de cotidiano-sempre-igual-a-sempre e os outrora tão interessantes planos virassem apenas divagações. Nestas horas, a Rotina, aquela séria e sóbria senhora muito metódica e muito virginiana, instalava-se imediatamente em sua vida, descolorindo por completo o seu caleidoscópio de intenções.

E então esperava pacientemente pelo próximo final de semana, pelo próximo semestre, pelo próximo ano. Esperava desinteressada pela próxima chance de provar a si mesma que as coisas poderiam ser diferentes. Ou menos desinteressantes.

Ali, naquele ponto de ônibus, fumando seu primeiro cigarro do dia, percebeu que estava, de fato, farta de esperar. Cansara-se de viver apenas de sonhos. A partir daquele dia, daria uma grande reviravolta em sua vida! Colocaria em prática seus planos, desta vez. Estava decidia. Só precisava, agora, estabelecer qual deles seria o primeiro.

Quem sabe aquela viagem que sempre sonhara em fazer? Sim, essa ideia seria muito boa para ser colocada em prática em primeiro lugar. Mas, para isso, seria necessário ter algum dinheiro. Não sabia se o que possuía era o suficiente. Então, que tal trabalhar em alguma coisa extra para juntar esse dinheiro? Era muito boa cozinheira, poderia, sim, fazer alguns quitutes e vender no intervalo das aulas da faculdade. Mas para isso, também, ela precisaria dispor de algum tempo para poder cozinhar. E tempo era algo que estava cada vez mais escasso, especialmente depois de ter aceitado aquele estágio no escritório, alguns meses atrás. Estágio este, aliás, do qual já estava terrivelmente cansada.

"Vou largar essa bosta de emprego, então" pensou. "Aí terei bastante tempo para me dedicar aos meus bolinhos."

Sim, mas aí não teria mais o salário com o qual se acostumara e, consequentemente, vender bolinhos não seria mais uma fonte extra de renda, mas sua única fonte de renda. E então não poderia viajar. E então...

E então o cigarro apagou, o ônibus chegou e seus projetos foram, mais uma vez, devidamente guardados na gaveta empoeirada da vida cotidiana.

...

(Cecília continua esperando o ônibus da vida até hoje.)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

"Crise de Natal"


No meio da sala, sentada de pernas cruzadas e iluminada pela inconstante luz colorida dos pisca-piscas, a moça fitava inexpressiva a árvore de Natal. Segurava nas mãos finas de unhas bem feitas uma garrafa de champanhe pela metade e um cigarro de filtro branco apagado. Sentia-se entorpecida. 

Era Natal, mais uma vez. E, mais uma vez, passaria esta data sozinha.

Completamente sozinha.

Não sabia por quê diabos sentia-se tão mal. Ela mesma sempre dissera a quem se propusesse a ouvir que o Natal não passava de mais uma data como outra qualquer, especial apenas para as lojas de brinquedos e comércios em geral que faturavam milhões com a propaganda consumista do tal do Papai Noel.

Mas todo ano era a mesma coisa. Dezembro se aproximava e, com ele, uma nostalgia gigantesca que fazia inclusive com que ela decorasse seu apartamento com a temática natalina.

Talvez esse sentimento fosse culpa da saudade que sentia dos Natais da sua infância, pensou ela, quando tudo era mais colorido e tinha gosto de caramelos açucarados.

Lembrava-se da confusão da família reunida, das conversas animadas, dos primos correndo para lá e para cá no quintal enorme da casa da avó.

Mas a avó morrera, os primos cresceram, os desentendimentos vieram e ela se viu passando as festas, ano após ano, cada vez mais sozinha.

Cada vez mais sozinha.

E seu temperamento também não ajudava, de fato. Precisava, mesmo, ser tão rude com qualquer um que ousasse se aproximar? Passara por bons bocados quando mais nova, de fato, e erigiu muralhas de sarcasmo e arrogância para separá-la da dor. Mas agora via-se presa atrás dessa fortaleza costumeira e sequer tinha ânimo para tentar dela se desvencilhar.

Suspirando, bebeu outro gole de champanhe.
(Era sua terceira garrafa.)

“Esse ano será diferente”, pensou ela. “Vou ser menos egoísta. Vou me aproximar mais das pessoas. Vou voltar a falar com a minha irmã. Vou...”

E então um riso seco, irônico, rasgou-lhe os lábios. Era sempre assim, todo santo ano a mesma coisa. A “Crise do Natal”. Ficava melancólica, refletia languidamente sobre sua vida, chegava às mesmas conclusões que então chegara, planejava mudanças, embebedava-se. E, no ano seguinte, continuava exatamente igual. Arrogante, sarcástica, egoísta. Sozinha.

Abriu outra garrafa de champanhe e bebeu quase todo o conteúdo de uma vez só, pensando que daquela vez seria diferente. No ano seguinte ela seria, sim, uma nova pessoa e aquela seria realmente a sua última crise de Natal.

Adormeceu ali mesmo, no meio da sala, rodeada de garrafas vazias e cigarros apagados.

...

No dia seguinte, comprou um cachorro.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A Caminhada (ou A Senhora De Vestido Amarelo)

A senhora de vestido amarelo preparava-se para sair. Calçou demoradamente seus sapatos marrons, procurou um chapéu que combinasse com o cinto, deu comida para seus três gatos gordos e apanhou as chaves de casa.

Estava entediada. Havia caído feio na cozinha semana passada por causa de um tapete mal colocado e o médico precisou proibi-la de sair de casa por pelo menos dez dias. Batera os joelhos. Graças a Deus não quebrara nada, mas deveria ficar de repouso e não abusar das juntas até que suas pernas não estivessem mais se parecendo com dois rolinhos gordos de massa de pão.

Olhou para as pernas. Ainda estavam bem inchadas, mas a dor era bastante suportável. E, de qualquer forma, não aguentava mais ficar dentro de casa. Sua única distração naquela semana havia sido caminhar do quarto até a sala, cansar-se terrivelmente com os programas televisivos, tentar sem sucesso aprender a usar o tal do computador com internet que sua sobrinha havia lhe dado e resmungar com os seus gatos.

Acordou aquele dia decidida a sair para caminhar. Visitaria sua amiga Selma, que vendia flores em frente ao cemitério. Conversariam sobre o tempo, a família e a morte e depois tomaria um café na padaria do seu Félix. Ele lhe contaria todos os acontecimentos dos últimos dias e ela voltaria alegre pela rua dos pinheirinhos bonitinhos.

Olhou pela janela. Talvez chovesse. Era bom levar um guarda-chuva.

O telefone tocou. Contrariada, a senhora atendeu-o. Era sua filha. Ligou para perguntar se estava tudo bem, se as pernas ainda doíam muito, se ela estava repousando como o médico mandou. Sim, não, sim. Não, ela não iria sair por aí batendo perna como sempre. Sim, sim, um beijo, tchau.

"Filhos, comportam-se como se fossem eles os pais, depois que ficamos velhos", pensou ela, rindo.

Trancou a porta da frente assobiando uma valsinha de quando era adolescente e esperou o elevador por quase cinco minutos, até lembrar-se de que o aparelho estava quebrado mais uma vez.

Aquilo seria um grande empecilho para sua caminhada. Será que ela conseguiria descer os três andares de escadas até o piso térreo? Pior: será que ela conseguiria subir de volta os três andares de escada até o seu apartamento?

Pensou por alguns instantes e deu de ombros. Faria uma parada estratégica na portaria quando chegasse, sentaria um pouco nos sofás para visitantes, conversaria com as faxineiras e depois subiria, descansada.

Desceu as escadas reclamando um pouco das pernas e muito do síndico e disse bom dia ao porteiro do prédio, que a ignorou, como sempre. Quando abriu as portas de vidro do hall de entrada, porém, notou que chovia. Torrencialmente. E ela havia esquecido o guarda-chuva. Não fosse o telefonema da sua filha para distraí-la, ela teria se lembrado de apanhá-lo. Agora não conseguiria subir para buscá-lo, suas pernas não aguentariam. E ela não confiava naquele porteiro novo para pedir a ele que entrasse em sua casa.

Frustrada, a senhora de vestido amarelo sentou-se no sofá para visitantes e apoiou a cabeça nas mãos. Olhou em volta. Ninguém com quem conversar, a não ser o porteiro novo que fazia questão de fingir que ela não estava ali.

Com um suspiro, pôs-se a observar a rua.

Havia um menino no meio da chuva. Era mais um borrão molhado e colorido do que um menino. Parecia ser o filho da Roberta, do duzentos e dois. E ele corria pela rua, pulava nas poças de água, abria os braços. E sorria. Sorria alegremente aquele sorriso que somente as crianças sabem sorrir.

A senhora levantou-se bem devagar e aproximou-se da soleira da porta. Lembrou-se de quando era menina e morava no sítio. Em dias de chuva de verão, ela e seu irmão costumavam apostar corrida molhada pelo gramado. Tinham consigo todas as verdades do mundo. A sensação era tão boa que a lembrança fê-la sorrir instantaneamente.

Então o menino parou bem em frente a ela e, rindo, fez sinal para que fosse até ele.

"Vem, dona Zuleica!" gritou ele "A chuva tá ótima!"

E ela foi. Sem pensar. Apenas caminhou em direção à chuva. Adentrou a cortina prateada de água gelada hesitante, com os passos trôpegos dos joelhos doloridos, mas envolvida por uma felicidade há muito tempo não sentida. A caminhada daquele dia rendera muito mais do que o esperado. De olhos fechados, deixou que a chuva escorresse pelo rosto e sorriu. Sorriu contente aquele sorriso que somente as crianças sabem sorrir.

- Tinha de volta consigo todas as verdades do mundo.

...

sábado, 18 de agosto de 2012

O Segredo Do Cobrador

(Conto originalmente publicado no meu antigo blog Ideias Mirabolantes. Resolvi republicá-lo aqui porque este é, de longe, um dos meus escritos preferidos e, por isso, não merece ser deixado ignorado e longe de seus irmãozinhos em um endereço eletrônico que ninguém mais acessa.)


***

O despertador tocou. Josimar abriu com dificuldade seus olhos verde escuros e tentou focalizar os ponteiros luminosos do seu rádio-relógio. Quatro e quinze da manhã. Hora de levantar, colocar o uniforme, comer os farelos do jantar e ir para o trabalho.

Josimar era cobrador de ônibus há uns oito anos, e era só. Todos os dias, de domingo a quinta, acordava antes das cinco horas da manhã, chegava cedo no trabalho, distribuía pequenas doses de automáticos “bom-dias” aos colegas de trabalho e às pessoas sem rosto que entravam e saíam de seu ônibus durante o dia, voltava para o apartamento na periferia que herdara dos pais no final da tarde, assistia a novela das oito que começava às nove na pequena televisão de quatorze polegadas, jantava qualquer coisa congelada e ia dormir antes das onze. De domingo a quinta Josimar simplesmente existia, fazendo exatamente tudo o que pelos outros era esperado que fizesse: Josimar, o que nunca se atrasa; Josimar, o que nunca erra no troco; Josimar, o Funcionário do Mês.

Ele levantou-se preguiçosamente e vestiu a camisa azul clara, a calça jeans surrada e os All Star vermelhos. Sim, hoje era dia de usar aqueles tênis vermelhos. Hoje não era um domingo ou uma quinta-feira qualquer, era sexta. Ah, a tão esperada sexta-feira. O dia em que Josimar finalmente poderia ser ele mesmo.

Passou um café fraco, comeu um pedaço de um pão doce que encontrara no armário e saiu, assoviando, para trabalhar. Até os seus “bom dias” ficavam menos automáticos às sextas-feiras. Talvez fosse coisa dos tênis vermelhos, diziam alguns de seus colegas. Talvez fosse a mágica psicológica das sextas-feiras, diziam outros. O fato era que até mesmo o dia de trabalho passava mais rápido para Josimar às sextas-feiras.

Era fim de tarde, já, e Josimar caminhava alegremente de volta para seu apartamento. Olhou em seu relógio de pulso, seis horas. Ele tinha exatas três horas para fazer tudo o que precisava ser feito para seu compromisso da noite. Dessa vez teria carona, graças a Deus, e não precisaria fazer tudo correndo. Hoje ele teria todo o tempo do mundo para se preparar.

Chegou em casa, tomou um demorado banho e, ainda de toalha, abriu aquela parte do armário que só era aberta naquele dia da semana. Destrancou as gavetas vagarosamente, como sempre fazia, curtindo cada momento, e puxou-as para si.

Depois de quase duas hora de indecisão, finalmente conseguiu escolher uma roupa que achou servir direitinho para aquela ocasião. Agora faltavam apenas os retoques finais na aparência e em alguns minutos já estava pronto.

Olhou-se no espelho e sorriu. Sim, aquele, sim, era seu eu verdadeiro. O vestido alaranjado, com detalhes em magenta cintilante e cheio de lantejoulas caía-lhe muito bem nas costas, alongando sua silhueta e dando-lhe um ar meio vintage. A maquilagem colorida em seus olhos verdes ressaltava seu olhar, propiciando-lhe sensualidade e mistério. E a peruca, ah!, como gostava daquele cabelo acobreado caindo em cachos pelos seus ombros! E os garotos da boate, lembrou-se com um sorrisinho, aqueles com certeza também gostavam.

O interfone tocou; sua carona chegara. E, finalmente, depois de seis dias sendo exatamente quem queriam que ele fosse, ele poderia ser, durante toda a madrugada daquela sexta-feira, quem ele realmente era. Deixava, então, de ser simplesmente Josimar Guimarães dos Santos Silva, cobrador de ônibus e funcionário do mês, para ser Lady Katrynna Glamourosa, a estrela de dança sensual por quem os garotões sempre se apaixonavam da boate drag Rainha da Cidade Pink.

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segunda-feira, 23 de julho de 2012

Os Duendes da Lua, Capítulo I: O Início

Espécies Mágicas dos Primórdios da Criação entrando em
contato com as Energias Telúricas durante um Conselho de
Segurança Mágica Inter-Temporal.

Nos primórdios da Criação do Universo, quando a Entidade Criativa Que Ficou Entediada E Resolveu Criar Coisas Bacanas Do Nada Para Passar O Tempo tomava uma xícara de chá gelado com dois cubinhos de açúcar para descansar do Grande Feito Grandioso De Todos Os Feitos, algumas gotas de seu chá divino caíram no planeta que hoje nos acostumamos a chamar de Terra, dando origem às famosas, ou nem tanto assim, Espécies Mágicas Dos Primórdios Da Criação.

De todos os seres pertencentes às Espécies Mágicas Dos Primórdios Da Criação, os mais poderosos eram, sem dúvida, os Duendes da Grande Fÿhllirën e seus charmosos cachos nas orelhas. Esta população vivia calmamente nos bosques temperados da atual Irlanda e possuía o dom de conectar-se intimamente com as Energias Telúricas.

Uma vez que os Espíritos da Terra eram os responsáveis por todo o ciclo de vida do planeta - e, se ficassem entediados ou insatisfeitos poderiam resolver causar um terremoto ou confundir as estações do ano só para se divertirem -, o dom dos simpáticos duendes era de extrema importância durante aquele período. Não era apenas devido aos garbosos cachos que saíam de suas orelhas que aqueles possuíam os mais altos cargos do Conselho De Segurança Mágica Inter-Temporal.

O Conselho de Segurança Mágica Inter-Temporal [CSMIT] era uma organização das Espécies Mágicas Dos Primórdios Da Criação que visava a segurança de todos os Seres Mágicos que vivessem no Planeta Terra ou nas proximidades dele, independentemente de qual Era pertencessem. Nele, discutiam-se projetos sobre os Meios de Transporte Mágico, a Ética do Poder Telepático, a Necessidade De Se Criar Regras Para Os Vôos Noturnos, entre muitos outros, enquanto jogavam bocha e bebiam frappuccinos alcoólicos.[1]

Por três Eras tudo correu na mais perfeita e maçante tranquilidade, até que Kashwëhnå, A Estranha, tornou-se rainha do povo da Grande Fÿhllirën. Documentos encontrados relatam que esta era a duende mais bela e mais charmosa da qual se tem conhecimento, com a pele muito alva, sardas púrpuras nas bochechas e cachos cor-de-abóbora cintilantes saindo das orelhas. Tais documentos nos dizem, ainda, que Kashwëhnå dizia ter tido relações sexuais com a Entidade Criativa Que Ficou Entediada E Resolveu Criar Coisas Bacanas Do Nada Para Passar O Tempo, falava sozinha, tinha visões apocalípticas e babava.
(Dizem também que sua baba era púrpuro-berrante e possuía poderes curativos, mas poucos aventuravam-se a ingerir tal pasta).[2]

A Grande Mudança se deu em um Equinócio de Primavera, quando, durante uma comemoração de mais uma crise histérica e alucinada da Rainha Kashwëhnå, surgiu no horizonte a figura pequena e bizarra de Ròhlumm Abdä, o Primeiro Goblin Ûhrk.

Os Goblins Ûhrk, de acordo com pesquisas recentes [3], foram possivelmente os frutos de cruzamentos incrivelmente férteis dos seres mutantes da antiga raça dos Thünnh Åhmee, os Primeiros Anões, com os exemplares da espécie Qözkåc Yuhmeë, os Seres Reptilianos. Tais Goblins possuíam uma pele escamosa de coloração mutável, dedos longos com unhas afiadas e olhos grandes e amarelos. Da antiga e bela raça dos Thünnh Åhmee sobrara apenas as cintilantes barbas encaracoladas. O principal poder dos Goblins Ûhrk era sua voz macia e venenosa que hipnotizava qualquer ser que tivesse ouvidos para suas palavras.

Ròhlumm Abdä, O Primeiro Goblin Ûhrk, tinha em mente um plano diabólico quando despontou no Reino Da Grande Fÿhllirën: Desestabilizar os poderosos duendes, fazê-los perderem seus poderes telúricos, destituí-los dos cargos que ocupavam no CSMIT e instaurar uma Ditadura Diabólica Em Favor dos Goblins Ûhrk.

E foi justamente com esta intenção que o persuasivo serzinho foi procurar pela Rainha Kashwëhnå, a Estranha.

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NOTAS:

[1] YOHLËG, Stephan Zinngner - CSMIT: Conselho de Segurança Mágica Inter-Temporal ou Apenas Mais Um Clube De Bocha? - Ed. BoaVentura, Zona Escura Da Lua, 252 N. E.

[2] DENDORIAN, Gimena Venceslau (org.) - A Estranha Coroada: Compilação de Manuscritos Fÿhllirënianos Da Era Migratória - Ed. Luneta Verde, Bosque Dos Gnomos Cor-de-Abóbora, 666 N. E.

[3] PACHECO, Salazar Monteÿn & PORLAHZ, Clarabel Ovídia - A Espécie Vilipendiada: os Goblins Ûhrk e suas contribuições para o Reino Mágico - Editora Nonsëhnse, Porão Vermelho, 2010 E. H.

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(Continua AQUI)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

O Rato Verde Com Asas (ou Uma História Nonsense Para Passar O Tempo)

"Rato Verde Com Asas Por Ele Mesmo"
Técnica: Mouse Ruim Sobre PaintBrush
Julho de 2012 - Rato Verde Com Asas

Era uma vez um Rato Verde Com Asas.

Um dia, estava o Rato Verde Com Asas voando alegremente pelo campo de girassóis – sim, ratos verdes com asas adoram voar alegremente por campos de girassóis – quando uma Cobra Cor-de-Rosa Com Óculos Escuros surgiu de um buraco no chão e o abocanhou – é, isso; cobras cor-de-rosa com óculos escuros adoram surgir de buracos no chão e abocanhar ratos verdes com asas que voam alegremente por campos de girassóis.

Depois disso, o céu se fechou num maremoto e o Grande Provedor Das Terras Girassoleianas surgiu com seu cajado de pirulito vermelho com listras brancas que é típico do Natal e convidou os seus protegidos girassóis para dançarem Salsa.

Todos os girassóis agradeceram o convite do Grande Provedor Das Terras Girassoleianas e puseram-se a dançar freneticamente; era uma honra para eles dançar salsa com tão ilustre figura.

Nada poderia estragar aquele momento tão lindo e tão particular aos girassóis, a não ser que esta fosse a história do Rato Verde Com Asas e não a dos Girassóis Que Dançam Salsa Com Seu Grande Provedor.

Como é justamente este o presente caso, os Girassóis Dançarinos De Salsa e seu Grande Provedor foram expulsos desta história por furto de papel principal e precisaram arrastar-se pelas sarjetas do universo literário pedindo esmolas em busca de uma nova história barata na qual pudessem se enfiar.

Restituído, desta forma, de seu antigo cargo de Protagonista De História Ruim E Nonsense, o Rato Verde Com Asas pôde continuar tranquilamente a ser quase digerido pela Cobra Cor-de-Rosa Com Óculos Escuros sem maiores interrupções.

E lá estava nosso pobre herói Rato Verde Com Asas quase sendo digerido pela Cobra Cor-de-Rosa Com Óculos Escuros quando, subitamente, ouviu-se um estrondo de trovão e um Camelo Púrpura Que Mascava Chicletes caiu do céu.

Com tamanho sobressalto, a Cobra Cor-de-Rosa Com Óculos Escuros engasgou-se e teve um terrível acesso de tosse, durante o qual o fabuloso Rato Verde Com Asas aproveitou para bater com força suas asas de rato verde e voar de dentro da barriga cor-de-rosa da cobra de óculos escuros o mais rápido possível.

Em sua afobação para sair da goela da Cobra Cor-De-Rosa Com Óculos Escuros, porém, nosso atrapalhado Rato Verde Com Asas voou direto para a corcova do Camelo Púrpura Que Mascava Chicletes, atingindo-a em cheio com um baque surdo.

E foi então que tudo aconteceu.

A corcova do Camelo Púrpura Que Mascava Chicletes era, na verdade, o botão de acionamento de uma bomba relógio poderosíssima enviada pelo Povo Inimigo Mortal Dos Girassóis Dançarinos De Salsa do planeta Sênmsens Suallgûmm para acabar com o campo de Girassóis Dançarinos De Salsa.

Acontece que, como você deve se lembrar, ou não, os Girassóis Dançarinos De Salsa já haviam sido expulsos desta história nonsense um pouco mais cedo, fazendo com que o Camelo Púrpura Que Mascava Chicletes E Na Verdade Era Uma Bomba Relógio, um tanto quanto desapontado, seguisse seu rumo pedindo desculpas à Cobra Cor-de-Rosa Com Óculos Escuros e ao Rato Verde Com Asas por interromper seja lá o que eles estivessem fazendo e fosse explodir sozinho e melancólico num campo de nabos saltitantes.

Depois de toda esta situação complexa e absurda propiciada pelo Camelo Púrpura Que Mascava Chicletes E Na Verdade Era Uma Bomba Relógio, O Rato Verde Com Asas acabou se tornando, contra todas as expectativas e apenas para deixar esta história ainda mais nonsense, um grande amigo da Cobra Cor-de-Rosa Com Óculos Escuros.


E os dois, desde então, jogam truco e bebem cerveja todas as quintas-feiras em companhia das Cinzas Chamuscadas Do Camelo Púrpura Que Mascava Chicletes E Um Dia Foi Uma Bomba Relógio e do Grande Provedor Dos Campos Girassoleianos - que, na verdade, não era provedor de girassol coisa nenhuma e estava só fazendo um bico nesta história para pagar a conta de luz atrasada do mês passado.

Fim.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Viagem Psicodélica Pós Quase Término Dos Trabalhos Finais

Escrevi esta história durante um surto de fim de semestre no primeiro ano de faculdade. Como estou passando por algo parecido esta semana e estou totalmente sem tempo de escrever qualquer coisa que não seja a forma de representação de mundo dos telejornais e a crítica modernista no século dezenove, publico-o aqui para apreciação geral da nação.

Aviso: Melhor visualizado sob o efeito de psico-ativos.

***

Estava eu dançando em um grande salão iluminado por fachos de luzes multicoloridas uma dança psicodélica ao som de Pink Floyd tocado por uma vitrola imaginária controlada por uma joaninha de óculos escuros cor-de-laranja.

- Quem pensou que tinha sentado no nabo no trabalho de Brasil Colonial?! – disse para mim mesma, dando um rodopio - Já é! Já é! Ninguém virou jantar, uh-uh! Ninguém virou jantar, uh-uh!

Saltei um duplo twist carpado e imitei uma dançarina de Hula-Hula.

- Hohohoho... PASSEIIII... sete no trabalho, oito na prova... uoooohhh! – gargalhei, andando como egípcia e balançado a cabeça loucamente - Sim, agora só falta saber como fui nas outras...

A música diminuiu.

- E terminar (ou começar) o trabalho de Ibérica...

A música cessou por completo.

- Que, aliás, é pra amanhã!

Estaquei no meio da sala e as luzes coloridas se apagaram, dando lugar a um irritante holofote com uma irritante luminosidade cujo irritante facho estava de uma forma particularmente irritante apontado para mim.

- AAAAAAAHHHHHHHHHHHH!!!!! – não pude deixar de gritar, quando a joaninha de óculos escuros cor-de-laranja aumentou de tamanho e virou um enorme e terrível Gil Vicente com dedo em riste e expressão acusadora.

Tentei fugir, mas o chão abaixo de mim começou a dissolver-se e sugar-me feito areia movediça. Berrei outra vez, desesperada, arrancando os cabelos em uma busca frenética e vã de sair dali.

- A sociedade portuguesa desse período de monarquia absoluta – disse o monstruoso rosto de Gil Vicente no mesmo instante em que começava a ficar loiro e parecer-se com o Lenine - aparece com as viagens de descobrimento e a fixação do além-mar e termina, em boa parte, no final do século XVIII e com as revoluções liberais do começo do século XIX.

- AAAAAAAAARRRRRRRRRRRRRRRRRREEEEEEEEEEEEE!!!!!!!!!!!!!!

O chão de areia-movediça estava me puxando cada vez mais para baixo, eu estava quase sufocada. Foi quando uma lagarta bigoduda veio navegando numa nau portuguesa do século XVI e parou ao meu lado.

- A senhora por acaso precisaria de ajuda? – perguntou-me do alto de seus bigodes pretos.

- Ah, não, não; imagina! Estou onde todo mundo sempre quis estar, não é?, sendo sugada por um chão de areia movediça! Quero dizer, é o sonho de todo mundo!

- Bem, para falar a verdade eu nunca sonhei com isso – ela me respondeu com uma sobrancelha erguida – Eu sempre sonhei que virava uma borboleta barbada e podia acampar no deserto do Atacama.

- É mesmo? Que interessante!

- Pois é. No Atacama, imagina! Bom, mas se você não está com problemas, vou perguntar pra outra pessoa. Desculpe incomodar.

- !!!

- Ah, e quase ia me esquecendo... – ela disse de novo retirando alguma coisa muito grande e muito pesada de dentro do seu bigode – Só pra garantir...

**POF!**

Sim, para os que não entenderam, ela bateu na minha cabeça com aquela coisa muito grande e muito pesada.

E sim, eu, obviamente, desmaiei.

Acordei o que me pareceram horas depois, com uma terrível dor de cabeça e em um lugar absurdamente surreal.

Estava deitada em um pufe macio e amarelo, feito com algum tecido esquisito que parecia ser composto de vários trapos de toalha esfiapados e muito usados.

Uma luz dourada iluminava um salão terrivelmente colorido, onde vários discos de vinil planavam felizes e esborrachavam-se uns nos outros.

No teto abobadado, pinturas renascentistas de anjos acenavam e piscavam os olhos para mim enquanto diabinhos fluorescentes espetavam-lhes as costas.

Tocava Beatles.

Levantei-me perguntando onde diabos estaria, e no mesmo instante um disco de vinil particularmente feliz deu um rasante muito próximo a mim, fazendo-me mergulhar de cara no chão.

Fechei os olhos, pressentindo a colisão com o frio piso de pedra cintilante que piscava a intervalos totalmente irregulares, mas a colisão não aconteceu.

Continuei de olhos fechados.

Já estava ficando de saco cheio dessa história surrealista, parecia uma viagem ácida, e eu estava totalmente sóbria!

Ok, estava um pouco fora de mim com a paranóia do trabalho que precisava terminar até a tarde seguinte, mas isso não poderia ser a causa de discos de vinil voadores, uma lagarta bigoduda e Gil Vicente virando minha professora de Ibérica.

E aquela dor de cabeça era muito, muito real!

Ora, pipocas! Eu precisava descobrir onde estava! Precisava sair dali! Precisava terminar o trabalho! Precisava ganhar na loteria! Precisava viajar o mundo inteiro! Precisava conhecer o Johnny Depp pessoalmente! Precisava... abrir os olhos, diabos!

Relutantemente, os abri.

O mundo (ou o que parecia ser uma cópia muito bizarra dele) dissolveu-se na minha frente, um tipo de escritório de redação de jornaleco se materializou e a lagarta bigoduda que me deu uma marretada na cabeça surgiu de trás de um ficheiro velho e mofado.

- Ora, a mocinha acordou! - disse ela - Tudo bem?

- Não.

- Que bom! – ela abriu um sorriso radiante, e em seguida franziu as sobrancelhas - Desculpa ter te tirado do seu sonho de areia movediça, mas, sabe como é, eu só trabalho aqui.

- ...

- Meu chefe já tá vindo aí, aí você fala com ele pessoalmente, tá?

- ...

- Por quê você não senta? - disse, apontando uma cadeira de praia de listras brancas e vermelhas e servindo-me uma bandeja com copinhos coloridos enfeitados com mini guarda-chuvas - Tome um suco, também.

Aceitei o suco. Estava ficando impaciente, a última vez que saí para uma viagem tão surreal quanto aquela as coisas não se sucederam de maneira muito agradável pra mim, no final das contas.

Ouvi então um barulho estrondoso de galope de cavalos, e o que me pareceram trombetas angelicais soaram.

- Oooooooláááááááá - disse uma coisa muito luminosa que entrou pomposamente no escritório, com uma voz em trovão.

- Ei chefe! Ela acordou! - disse a lagarta bigoduda.

A luz se apagou, revelando uma figura muito gorda trajando paletó e chapéu de mafioso.

- Ah, sério?! - disse o gordo de chapéu - Não me diga! Ora, pois me diga alguma coisa mais útil da próxima vez!

- Desculpa, desculpa, chefinho!

- Tá, tá. - a figura enorme voltou-se para mim - Desculpe, Karol. Ele estragou minha entrada triunfal, eu tinha até comprado um holofote pra fazer bonito, mas... enfim, não importa. Essa mosca do cocô do cavalo do bandido do filme de caubói americano contou-lhe o porquê de estar aqui?

- Ah... não... - respondi, meio desnorteada. Primeiro personagem maluco que eu encontrava e realmente sabia meu nome! - Como você...

- Ora, obviamente eu sei o seu nome! Você não sabe o seu nome? Eu posso dizê-lo para você, você se chama Ana Carolina, mas é mais conhecida como Kar...

- Eu sei o meu nome, obrigada.

- Então não há com o que se preocupar! Pois bem, então. Já que esse estrupício não lhe contou, terei eu mesmo que fazer o trabalho sujo.

A figura empinou o peito e pareceu ficar ainda mais enorme.

- Você está aqui exatamente pelo fato de estar aqui. Se você não estivesse aqui, não estaria, concorda?

Puxa, que grande revelação! Como não pensei nesse motivo antes?

- E o fato de você estar aqui - continuou pomposamente - significa que você não bate bem das idéias e precisa de um descanso.

Outra grande revelação. Francamente, eu ainda tinha que terminar o meu trabalho!

- Sim, sim, ok - falei - Mas acontece, enorme figura de paletó e chapéu de mafioso, que eu realmente preciso ir embora, certo? Tenho um trabalho para terminar e...

- Ora, justamente! Eu tenho a solução para isso! E você sabe que eu tenho, por isso veio até aqui.

- Na verdade eu vim porque aquela lagarta me deu uma cacetada e me trouxe para cá.

- Eu só trabalho aqui! - gritou a lagarta de trás de uma árvore de Natal.

- De qualquer forma, eu tenho a solução para seu trabalho - o cara gordo de chapéu de mafioso abriu uma gaveta verde-musgo de uma escrivaninha sorridente e tirou de dentro dela um frasco multicolorido e fumegante - Beba.

Ah, claro. Iria beber aquilo, sim. Com certeza.

- Obrigada, não estou com...

- É uma mistura mágica de ervas e absinto com aroma de limão, não há com o que se preocupar.

- Ah... então... você disse absinto?

Bem, aquilo não podia ser tão ruim, não é? Bebi.

Em seguida a lagarta bigoduda voou na minha direção e ficou pequenininha, entrando pelo meu ouvido.

As imagens ao meu redor começaram a parecer que eram feitas de vidro, vidro este que se estilhaçou em mil pedaços e derreteu em mil cores até tudo ficar branco, ofuscantemente branco.

Enquanto isso, pensamentos que nunca me ocorreram antes brincavam de ciranda-cirandinha em meu cérebro.

Tive um relance do sentido do Universo, foi-me visível a única forma de se acabar de vez com a fome e a desigualdade do mundo, pude compreender como funcionam as religiões e seus deuses, descobri o que era Deus, soube que o mundo ia acabar e que existe vida em outros planetas, pude perceber o quão ínfimo é o ser humano, quantos atos grandiosos foram vãos, como eu não sou nada e como o nada é tudo e o tudo é grande demais pra ser apreendido.

Todas as revelações possíveis me foram feitas, e eu senti que não poderia agüentar, que meus miolos estavam prestes a sublimarem em minha cabeça.

A lagarta bigoduda apareceu girando em espirais na minha frente, dizendo com voz fantasmagórica:

- Escolha... esqueça... escolha... esqueça...

Precisei ser rápida e forçar minha mente a esquecer toda a essência do que estava sendo revelado. Só podia manter comigo...

Uma luz piscou, eu fui jogada por uma janela e estava em meu quarto, sentada na frente do computador, com brilhantes (ou nem tanto assim) idéias para serem escritas em meu ensaio sobre Gil Vicente e a sociedade portuguesa em sua obra.

...

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Sinos

Abriu a janela e sentiu os últimos raios de Sol tocarem-lhe a fronte.
O céu estava cor-de-rosa, dourado, vermelho, violeta, azul, anil.
Um caleidoscópio de imagens invadiu seus olhos, dissolvendo-se num maremoto de formas coloridas.
Ouvia sinos.

Já era noite.
A Lua, crescente e canceriana, observava o mundo com a nostalgia dos Loucos.
O latido longínqüo dos cachorros e o cricilar tímido de alguns grilos eram os únicos sons que se ouvia naquela pequena cidade do interior.
E os sinos.
Os irritantes e insistentes sinos.

A madrugada ia solta.
Ela corria sem rumo pela ruas desertas e esburacadas da cidade, sob o olhar alaranjado e desaprovador das lâmpadas elétricas.
O som dos sinos ficava cada vez maior, as badaladas ecoavam assustadoramente altas em seus ouvidos.
E ela corria.

Começara a chover.
A imagem da grande igreja gótica iluminou seus olhos por alguns instantes. Ela parou.
A água escorria dos seus cabelos, seus sapatos estavam encharcados, ela tremia de frio.
Subiu a escadaria da igreja e abriu com estrondo a grande porta de entrada, quebrando a corrente que a mantinha fechada.
E os sinos, os desesperadores e insistentes sinos, continuavam a tocar.

No dia seguinte, a policia local encontrou a garota no altar da pequena capela da cidade.
Uma poça de sangue a circundava, havia talhos em seus pulsos.
Sua expressão era serena.
E os sinos, os alegres e simpáticos sinos, finalmente pararam de tocar.

...

(Águas de São Pedro, março de 2008)

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Sobre Quando Conheci Os Seres De gravatas Púrpuras

(Aqueles que me conhecem há mais tempo já ouviram esta história. Publico-a aqui, reciclada e reescrita, porque... bem, e porque não? :P)
...

Certa noite fui abduzida por alienígenas. 


Lá estava eu, calmamente fumando um cigarro em minha varanda quando notei algumas luzes piscando ao longe no enevoado céu de São Paulo. Logo pensei ser um relâmpago, mas, bem, relâmpagos são brancos, não púrpuro-berrantes. Talvez fosse um avião. Mas aviões também não tem essa cor. Ou tem?

— Huuuum! — pensei, sorrindo — Quem sabe é uma nave espacial! Seria divertido conversar com uns alienígenas, assim, pra variar... olha, se vocês quiserem vir aqui trocar uma ideia comigo podem vir, viu, eu...  — continuei, em voz alta, fazendo uma piada comigo mesma.

Alguns segundos depois, parada em pleno ar na frente da varanda do meu apartamento, havia uma pequena nave verde-limão em formato de ovo, com faróis de cor púrpura berrante e uma pequena janelinha de vidro de onde algumas formas escuras observavam-me com interesse.

Segundos depois, uma dessas formas escuras abaixou o vidro da nave e apontou-me uma pistola cor-de-abóbora cheia de protuberâncias arroxeadas.

Segundos depois, eu estava inconsciente.

Quando finalmente acordei, vi-me deitada num luxuoso canapé vermelho que ficava encostado à parede de um quarto deveras aconchegante onde havia uma lareira, um tapete verde musgo, estantes de livros e música ambiente.

Pisquei os olhos algumas vezes. Aquilo não era possível, eu devia estar sonhando. Ou alucinando. Como eu havia ido parar ali? Por que eu estava ali? Onde, diabos!, era ali?

Levantei-me cautelosamente e, assim que o fiz, as luzes piscaram todas e o quarto se dissolveu como que num caleidoscópio, dando lugar a uma sala de controle tipicamente alienígena com botões tipicamente alienígenas e seres tipicamente alienígenas vestindo gravatas púrpuras tipicamente alienígenas.

- Ok. Não entre em pânico, Carolina, não entre em pânico... - pensei, prestes a, de fato, entrar em pânico.

Eis, então, que um daqueles seres tipicamente alienígenas virou-se vagarosamente em minha direção, abriu sua enorme boca cheia de dentes fosforescentes e disse:

- Ahn... é... a senhorita gostaria de uma xícara de café?

- !!!

Eu fiquei completamente embasbacada. Estava em uma nave alienígena tendo um contato de quarto grau com seres extraterrestres que estranhamente sabiam falar português e tudo o que eles me disseram foi: a senhorita gostaria de uma xícara de café?!

Quem diabos seriam aqueles caras? Por que eles me trouxeram a bordo de sua nave? Onde estariam indo? Como, por Zeus, eles sabiam falar português?

O estranho ser continuava a fitar-me com seus imensos olhos de bolas de tênis. Seu braço seguia estendido em minha direção com uma xícara de porcelana chinesa na mão. Ai, cacete, e agora, o que cargas d'água eu devia fazer?

Resolvi, então, aceitar a oferta, uma vez que, talvez, uma recusa pudesse ser vista como ofensa por parte dos meus anfitriões. Bebi, então, um pequeno gole do líquido preto, rezando por dentro para que aquilo fosse realmente o que conhecemos na Terra como café. 

De fato, para minha alegria, era café. E não estava nada mal, na verdade, só ligeiramente morno.

- É... - tentei um contato.

- Silêncio! - disse outro Ser, levantando-se e subindo em um banquinho - Saudações, terráquea - continuou - Leve-nos ao seu líder!

Oi?! Leve-nos ao seu líder?! Pohan, como assim? Essa era realmente a última coisa que eu esperava ouvir de um ser alienígena. Talvez eu estivesse em um filme de ficção científica de quinta categoria e não soubesse ainda. Onde estariam as câmeras?

- Hã... líder...? - balbuciei sem saber o que responder.

- É, mina! Líder! Tá ligada aqueles caras que comandam tudo, que são os reis da parada? Os fodões, saca?

Tive que esperar alguns minutos para digerir aquelas palavras, mais especificamente aquele linguajar. Os etês eram manos, rappers, então. Que coisa. Quem diria.

- Ahm... seguinte, mano... - comecei, tentando entrar no clima - a parada é que não têm líderes nessa joça, tá ligado? A não ser que vocês estejam querendo falar com o presidente dos Estados Unidos, saca, ele não é o fodão, manja, mas sempre acha que é.

- Ah... - os seres ficaram um momento em silêncio, sem saber como continuar.

- É o seguinte, terráquea - começou outro deles - Nós viemos em paz...

- Não, não, NÃO! - gritou o que ainda se encontrava em cima do banquinho - Tá tudo errado, não é desse jeito que se aborda um terráqueo! Vocês não se lembram do filme? Não era nada disso, não! E você, Mano Brown - continuou, virando-se para o que falava com vocabulário rapper mano - Será que dá pra parar de falar como os terráqueos do filme estúpido que você não pára de assistir?

Minha cabeça começou a girar. Só podia estar alucinando. Olhei em volta e notei algumas fitas de vídeo jogadas a um canto, cópias dubladas de filmes B de alienígenas e um ou outro vídeo dos Racionais MC’s e do Marcelo D2.

- Certo, isso explica muita coisa - pensei com meus botões - Os etês viram essas fitas, aprenderam o português de mano e tentaram um contato. Ah, é claro. Plausível. E o fato de que eu devo estar completamente alucinada, doida varrida e variada das idéias também.

Os tais seres com gravatas púrpuras entreolharam-se sem saber o que dizer. Eu estava meio zonza. Pensei então que, se estivesse de fato alucinando, o melhor a se fazer era entrar de cabeça na alucinação e deixar que ela se desgastasse por si própria. Ou não. Acontece que a única coisa que eu sabia naquele momento era que não sabia era de nada e, portanto, resolvi ser muito mais fácil entrar na onda dos etês e deixar para perceber que tinha ficado louca depois de descobrir em que maldita confusão eu havia me metido desta vez.

- Aí, pessoal - comecei, juntando os últimos traços de eloqüência que me haviam restado - E então, o que vocês gostariam de mim, exatamente?

- Ah, puxa, achei que fosse óbvio! - respondeu o ser do alto do banquinho - Queremos analisá-la, estudá-la e catalogá-la como amostra do espécime humano!

Epa. Aquilo definitivamente não era nada bom.

- Oi?! Como assim?! - exclamei, indignada.

- Hã... - começou outro dos seres, visivelmente constrangido - não é isso o que extraterrestres fazem?

Eu senti que não iria aguentar aquilo por muito mais tempo. Havia alguma coisa muito, mas muito errada ali, e não era só a minha cabeça. Será que aqueles seres estariam sofrendo de algum tipo de amnésia?

- Então - eu falei - Na verdade, extraterrestres não fazem nada disso, não... Achei que vocês soubessem, uma vez que vocês mesmos são extraterrestres, que esses filmes que vocês têm assistido são só ficção, sabe? Bobagenzinha pra diversão de final de semana, essas coisas...

- Ah, é mesmo? Puxa, sabe, é que estamos passando por alguns problemas de memória ultimamente, você entende? Não conseguimos nos lembrar direito o que foi que aconteceu, só que estávamos aqui nas proximidades desse planeta azul quando perdemos a memória, e aí para passar o tempo resolvemos arranjar alguma coisa para fazer, sabe, foi quando conseguimos essas fitas, e tal...

- Ah, eu entendo perfeitamente - eu disse - Mas é justamente isso o que os extraterrestres de verdade fazem, sabia? Digo, observar os terráqueos de longe, manter o mínimo contato possível, aprender sobre eles à distância...

- Aí, truta, quer dizer então que a galera aqui tava tudo no caminho certo sem saber, mano! - disse o tal Mano Brown - Curti, mina, tu é firmeza! - e continuou, virando-se para o outro - Aí, acho que é melhor mandar a princesa de volta pra casa, né não, véio?

- Só. Desculpe-nos, terráquea. Fique em paz.

E, no segundo seguinte, eu estava em casa mais uma vez.

...

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Saudade



Caiu com um baque surdo do lado de dentro do cemitério. Subitamente pareceu-lhe que todos os sons da rua haviam desaparecido. Estava só, cercada pelos túmulos.

O vento gelado balançou-lhe os cabelos negros e despenteados. Puxou para cima a gola da blusa e envolveu-se com o cobertor escuro e marcado. Pegou um embrulho tosco no chão e de dentro retirou uma garrafa de vinho barato. Bebendo um gole, sentiu o gosto ácido do álcool queimar-lhe a garganta.

Caminhou sem dificuldade pelas alamedas fracamente iluminadas à luz minguante da lua. Seu vulto escuro lembrava uma criatura notívaga saída diretamente do mundo dos mortos. O silêncio aterrador era quebrado apenas pelo farfalhar do vento nas copas das árvores.

Chegou ao centro. Uma grande cruz dourada erguia-se ereta, projetando agourentamente sua sombra sobre o tampo de mármore de outra sepultura. As árvores balançavam-se fantasmagoricamente.

Bebeu mais um gole de vinho.

As mãos brancas acariciavam a pedra fria do túmulo. Tirou uma vela do bolso e a acendeu. Aproximando-se da lápide, leu o epitáfio e contemplou outra vez a foto amarelecida.

Lembrou-se daquele rosto outrora cheio de cor. Os cabelos castanhos, os olhos brilhantes, as covinhas que apareciam nas bochechas morenas quando ria aquele riso contagiante, alto e colorido que só ela sabia dar...

Seus olhos vermelhos lentamente fecharam-se e abriram-se novamente, permitindo a fuga rápida de uma lágrima enegrecida pela maquilagem borrada.

Limpando o rosto, bebeu outros goles.

Sentou-se vagarosamente na sepultura e recostou-se na cruz. Aninhou-se apertando ainda mais o cobertor. Ficou alguns instantes assim. Imóvel.

Acendeu um cigarro e fumou-o avidamente até o filtro.

Pegou novamente a garrafa de vinho, ainda cheia pela metade. O cheiro adocicado e nauseante impregnou-lhe as narinas. Virou o líquido na boca, empurrando-o para dentro de uma vez só.

Atordoada, fitou a Lua. Pensamentos disformes passavam correndo pelo cérebro, fugindo de seu entendimento. Sensações de tristeza, pessimismo, desilusão. Angústia. Solidão.

Tirou do bolso um canivete. A lâmina fria brilhou branca com a luz do luar. Observou como que hipnotizada seus pulsos. Queria acabar com tudo. Desistir. Sempre pensava nisso. Não podia suportar mais as agressões do padrasto, a falta de amor, o futuro perdido.

O coração batia apertado quando se deitou ao lado da foto. Agora mais do que nunca sentia falta da mãe. Morta. Enterrada. Há dois anos. Quase esquecida. Nunca mais a veria, nunca mais, nunca mais, nunca mais...

***

O som dos passarinhos anunciava que o dia estava próximo. Acordando, ela abriu os olhos e pôde ver o céu azul cada vez mais claro. Sua cabeça zunia.

Levantou-se com dificuldade e recolheu seus pertences. O canivete, imaculado, estava caído ao lado da foto de sua mãe. Como sempre, não conseguira desistir.

Dirigindo-se para o muro do cemitério parou mais uma vez e olhou para trás. Ao mesmo tempo em que os primeiros raios de Sol tocavam sua fronte e uma brisa amena balançava seus cabelos, sentiu – podia jurar que sentiu – o peso carinhoso da mão de sua mãe em seu ombro.

Um fiapo de sorriso brotou em seus lábios, ao mesmo tempo em que as lágrimas vieram.

“Continue forte” pensou. “Ela está comigo. Sempre esteve. Sempre estará.”

...

domingo, 17 de junho de 2012

Alô?

(Este conto foi escrito para uma aula de redação quando eu estava no primeiro ou segundo ano do ensino médio. Publiquei-o no antigo Ideias Mirabolantes há eras, mas resolvi republicá-lo também aqui porque, bem, o blog é meu e eu publico aqui o que eu quiser. Desta vez não alterei nada, está exatamente como a Carol adolescente de nove anos atrás o escreveu. E se alguém quiser ver a mim e a minha irmã pagando O Mico Do Universo, aqui tem o link para o vídeo no Youtube em que estamos pseudo-encenando a conversa que se segue XD)

...

Era uma tarde chuvosa. O telefone tocava enquanto raios e trovões estremeciam a cidade. 

— Alô? — disse Catarina ao atender ao telefone.

— Alô! — respondeu a voz do outro lado.

O telefone chiava. A ligação estava péssima, devido ao mau tempo. Quase não se ouvia a outra pessoa falar.

— Gostaria de falar com quem? — continuou Catarina.

— Por favor, a Carolina está?

— Hã? Catarina? Sou eu, querida, quem é?

— Carolina? Oi! É a Telma!

— Celma? Oi amiga, há quanto tempo...

— O tempo? Tá horrível mesmo, tá vendo que chuva!

— Se eu comi uva? Não... que pergunta estranha! Mas, viu Celma, não sabia que você tinha meu telefone!

— O meu telefone? Mas você tem! Quer de novo?

— O que foi? A Ivone tá sem café com ovo? Quem é Ivone? Eu não estou entendendo bem, a ligação está horrível!

— O que você tá vendendo? Pichação comestível? Ih, Carolina, Não estou escutando bem... mas, assim, te liguei para saber se você vai mesmo na festa do Honório...?

— No velório?!? Credo Celma, você sabe que tenho pavor dessas coisas... nem no enterro da minha mãe eu fui!

— Hum? Que foi?

— Como que foi? Que horror... velório de quem, fazer o quê?

— Ah, vai toda a turma lá no Honório; vai ter bolo, brigadeiro, empada com presunto...

— QUÊ!? Ir pra tumba ser enterrada com o defunto?! Tá de brincadeira ou o quê, mulher?

— Brincadeira? É, podemos brincar do jogo do ovo na colher... mas com certeza eu vou perder, tenho um equilíbrio... mas então, você vai?

— Tá louca? É claro que não!

— Pô Carolina, é sempre assim! Você vai, me convida, chega na hora e diz que não vai! Depois eu que sou a estranha...

— Ei! Eu não sou uma barrica de banha! Você que é muito magra, parece uma máquina de churros!

— Heim? Quem carece de uma fábrica de urros? Olha, Carolina, você parece uma mosca morta! Nunca sai de casa! Se gosta de ficar aí mofando, ótimo, só não convide os outros para sair!

— Oh! Como ousa?! Sua lombriga assada!

— O QUÊ? E você que parece um urso peludo?

— Ah! Lambisgóia!

— Vaca!

— Galinha!

— Morcega de cemitério!

Nesse momento a chuva parou, e a ligação melhorou bastante.

— Ora, você me convida para ir à um velório e eu que sou morcega de cemitério?! — berrou Catarina.

— Eu te convidei pra um velório? Quando?

— Agora há pouco, no telefone... mas espera aí, essa não é a voz da Celma!

— Celma? Aqui quem fala é a Telma! E aí? Não é a Carolina?

— Não, é a Catarina...

— Ah, desculpa, então foi engano...

TU TU TU...

quinta-feira, 14 de junho de 2012

O Passeio Noturno Da Mulinha Caipira

A meia-noite de uma sexta-feira junina anunciava-se, friorenta e preguiçosa, enquanto a pequena mulinha caminhava despreocupadamente pela estrada de terra. Locomovia-se com vagar, pata ante pata, passeando tranquila pelos ermos sítios interioranos. Conhecia bem o caminho, utilizava-o noite após noite como campo de passeio para fortalecer os músculos de suas finas pernas atarracadas. Seu pelo cinzento brilhava na garoa fina, fazendo-a parecer, como alguns de seus colegas de fazenda haviam dito, um unicórnio cintilante. Não que soubesse, exatamente, o que diabos significaria parecer-se com um unicórnio cintilante. Mas parecia ser algo bom, no fim das contas. As galinhas que lhe confidenciaram isto possuíam um bom coração. E ela gostava de coisas boas, para falar a verdade. Coisas boas faziam a vida boa, como aquela boa caminhada noturna, na mais completa e deliciosa solidão.

E lá estava a nossa amiga mulinha aproveitando ao máximo sua própria companhia quando eles apareceram. Vieram em algo luminoso e barulhento, rindo histericamente e fazendo grandes sulcos na terra molhada. Retiraram impiedosamente algumas pedras que serviam como ponto de base e encurralaram a pobre mulinha em uma ribanceira. Ela não sabia o que estava acontecendo, o que deveria fazer ou como sairia daquela situação. Aquilo definitivamente não era uma coisa boa. Não, realmente não era.

Com o coração acelerado, a mulinha deu alguns passos incertos até uma cerca de madeira. Seu coração disparara, precisava se recompor. Nunca antes havia passado por algo como aquilo. Quem seriam aqueles seres? O que será que eles poderiam querer com uma pacata mulinha como ela?

A máquina luminosa aproximou-se, deixando o som das gargalhadas e dos metais distorcidos mais alto. A mulinha contou pelo menos cinco seres escuros com olhos brilhantes dentro dela. O quê diabos seriam eles?

A mulinha lembrou-se, então, com o coração apertado, das histórias que seu colega peru contava antes de desaparecer por completo em uma véspera de Natal. Eram histórias sobre seres de outros planetas e das estrelas distantes do céu noturno que apareciam de tempos em tempos nas fazendas do mundo para sequestrar os animais e fazer experiências terríveis com seus cérebros e tripas ou expô-los em zoológicos intergalácticos sem comida decente por milhares de anos a fio ou até que morressem de fome.

"Meu Fazendeiro Divino!" pensou a mula "Estou prestes a ser abduzida por alienígenas!"

Um dos seres que estavam dentro da máquina luminosa abriu magicamente uma janela de vidro e colocou para fora um aparelho cintilante.

"É agora" pensou a mula fechando os olhos "Adeus, Terra. Adeus, fazenda. Adeus caminhadas noturnas. Adeus..."

Clique. Risadas. Roncos de motor. Silêncio.

A mulinha abriu hesitantemente os olhos. À sua volta, apenas as conhecidas árvores e pedras de sempre. A terra em que pisava estava um pouco bagunçada, é verdade, mas, fora isso, tudo na mais perfeita normalidade.

Ela não fora abduzida, no fim das contas. Mas uma experiência como aquela ficaria para sempre guardada em sua memória. Ela nunca mais seria a mesma. Aquela mulinha tranquila e pacata que gostava das coisas boas da vida havia acabado de morrer.

...

Daquele dia em diante, a mulinha passou a intitular-se A Enviada Do Fazendeiro Divino e pregar insistentemente que o Fim do Mundo estava próximo e todos os que não se arrependessem de seus pecados e aceitassem a palavra divina do Fazendeiro seriam levados pelos Terríveis Alienígenas Gargalhantes para o outro lado da galáxia e arderiam eternamente em plantações de cana extraterrestres até o dia do Juízo Final.


XD

terça-feira, 5 de junho de 2012

Superproteção

Diana era uma garota comum. Tinha um rosto comum, um corpo comum e uma personalidade comum. No auge dos seus dezessete anos, estudava para prestar vestibular e fazia aulas de inglês na rua em frente da sua casa. Suas diversões aos finais de semana eram ir à casa da avó junto com sua mãe, comer sorvete de chocolate junto com sua mãe e assistir a comédias românticas na tevê junto com sua mãe.

Diana não saía à noite. Não bebia, não fumava e nunca experimentara qualquer estado alterado de consciência. Não ia a festas, tampouco, nem conversava com garotos. Ou com garotas. Não gostava dessas coisas. Não faziam bem para a saúde, não eram coisa de moça direita. O mundo fora de sua casa era muito perigoso. E todas as pessoas em geral eram cínicas e interesseiras. Não valia a pena relacionar-se com ninguém, no fim das contas. Exceto, talvez, com sua mãe.

Ou, pelo menos, era isso o que ela sempre lhe dissera. E, bem, se sua mãe dizia, devia mesmo ser.

Um belo dia, logo depois de completar dezoito anos, Diana finalmente passou no vestibular. Faria administração em uma relativamente bem conceituada faculdade particular. Sua mãe não se conteve de felicidade, sua filhinha passara na mesma universidade onde ela própria lecionava! Eram cursos diferentes, de fato, ela era professora do curso de economia. Mas, ainda assim, elas poderiam ir para a faculdade juntas, almoçar juntas, voltar para casa juntas! Seria maravilhoso!

Passado pouco mais de um mês do ano letivo, porém, Diana recebeu a notícia de que havia passado na segunda listagem do vestibular de uma universidade pública cujo ensino era definitivamente muito melhor. O nome dela em seu diploma lhe abriria todas as portas importantes do mundo profissional. Mas estava apreensiva. Como seria enfrentar uma universidade com padrões tão altos como aquela? Como seriam seus colegas, seus professores, sua vida naquele lugar? A universidade ficava na mesma cidade onde morava, a mudança não seria assim tão grande. Mas teria de aprender a respirar por conta própria, ali sua mãe não estaria com ela o tempo todo. Diana não sabia se estava preparada para isso.

A mãe de Diana disse que havia ficado muito orgulhosa e que, obviamente, a filha deveria mudar de universidade. Seria muito melhor para seu currículo. E não ficaria bem para a vizinhança se Diana continuasse naquela faculdade particular tendo passado em uma das melhores universidades da América Latina. Estaria tudo bem, desde que ela ficasse sempre atenta a todos os perigos existentes em um lugar tão amplo e diverso como o que iria frequentar. Muita coisa ruim poderia acontecer, sempre, e ela não podia esquecer-se disto nunca.

O primeiro dia de aula foi uma experiência terrível. Ela não sabia como se comportar, com quem conversar, o que dizer. Tinha medo de errar, de não ser aceita, de não ser capaz. Estava hesitante, distante, completamente perdida naquele mundo imenso e completamente novo.

Mas as coisas acontecem como tem de acontecer. No fim da primeira semana, Diana conheceu uma moça que, a princípio, desaprovou completamente. Era negra, usava dreadlocks nos cabelos e fumava muito. E tinha o apelido de Banza, veja só! Sua mãe definitivamente a aconselharia a não se aproximar de um tipo como aquele. A moça, contudo, mostrou-se muito simpática, ajudando Diana com as matérias passadas e apresentando-a ao resto da universidade.

Diana gostou muito daquela moça. Das outras pessoas com quem acabara convivendo no espaço da faculdade também. Mas com Banza, em especial, descobriu que desenvolvera um tipo de carinho específico. Talvez fosse o fato de que ela era exatamente o oposto do que sua mãe acharia uma boa companhia. Talvez. Talvez fosse isso.

E então, em uma noite quente de sexta-feira, Diana resolveu participar de sua primeira festa. Sua mãe não a proibiu de ir, apesar de enumerar pelo menos cinco vezes os riscos aos quais Diana estaria exposta em um ambiente como aquele. Ela quase desistiu, é verdade, mas Banza conseguiu convencê-la de que seria uma experiência muito interessante. Disse que o ambiente acadêmico não se resume a sala de aula e que o dinheiro arrecadado com o evento na faculdade seria para a formatura do pessoal. E disse também que, se alguma coisa desse errado ou Diana não estivesse se sentindo bem, ela a levaria para casa depois sem problema algum.

Diana divertiu-se naquela noite como nunca antes divertira-se na vida. Resolveu até experimentar um gole de cerveja, assim, só para não dizer que nunca havia provado. E descobriu que não era de todo ruim. Bebeu algumas latas, experimentou um trago do cigarro de sua amiga, deu um gole no que disseram ser algo como "gasolina de avião". Dançou como se ninguém estivesse olhando. Conversou sem apreensão com todas as pessoas que lhe sorriam. E, quando o dia já estava quase raiando e Banza a levava de volta para casa, fez algo que nunca antes havia passado em sua cabeça: beijou sua amiga demoradamente, como se não houvesse amanhã.

Quando Diana deitou-se na cama para dormir naquela manhã, descobriu com um choque que estivera acorrentada durante toda a vida. Percebeu que tudo o que pensava era fruto do que sua mãe dizia e que toda a sua personalidade havia sido desenvolvida em torno dos julgamentos únicos de sua progenitora. Compreendeu que nunca antes fizera absolutamente nada por conta própria e que todo o seu medo do mundo vinha exatamente desta superproteção.

No dia seguinte, Diana fugiu de casa.

...

terça-feira, 29 de maio de 2012

Devaneios de Olívia Rey



Três horas da manhã. Olívia revirava-se nos lençóis sem conseguir dormir. Pensamentos desconexos assaltavam-lhe a mente, um mais peculiar que o outro, um mais absurdo que o outro. Um mais doce que o outro.

- Maldita insônia! - pensou, levantando-se e dirigindo-se à varanda.

Acendeu um cigarro. Ridículo pseudo-refúgio da timidez e do nervosismo. Mas, e daí? Do seu esconderijo no milésimo andar podia espiar sem ser notada toda a vida noturna e secreta de uma cidade insone, incapaz de parar, incapaz de descansar, incapaz de...

- Assim como eu - pensou, dando uma longa tragada no cigarro.

O céu e a terra haviam invertido os papéis, ela pensava. As estrelas haviam caído e se alojado nas lâmpadas elétricas que se estendiam pelo horizonte, enquanto a Lua brilhava sozinha no firmamento, minguante e Capricorniana.

As frustrações todas de sua curta vida burguesa dançavam tango com os momentos de êxtase e felicidade num compasso dolorido e envolvente, paranóico, assustadoramente delicioso.

Passou a pensar em tudo o que poderia ter sido e não foi, em tudo o que não poderia ter sido e foi, em tudo o que poderia ser e de fato foi.

Deu outro longo trago no cigarro e apagou-o no cinzeiro de cristal falso. Olhou para o céu e desejou viver uma grande aventura, digna de livro de ficção. Queria viver algo pelo qual pudesse ser lembrada, algo que lhe permitisse ter histórias verdadeiras para contar. Algo relacionado a piratas espaciais, magos da idade das trevas ou até Terríveis Bestas Vorazes de Traal.

Será que ela estava no lugar certo, na hora certa, fazendo a coisa certa? Ou será que foi justamente o contrário o que aconteceu?

Ninguém nunca saberá.

O que se sabe é que alguma coisa certa estalou em seu cérebro com um ruído errado e Olívia Rey nunca mais foi - ou pôde ser - a mesma.

...

(Olívia Rey é minha única personagem que não tem biografia definida. Sua vida sempre foi tipicamente paulistana, tipicamente classe-média, tipicamente típica. Ela só existe em seus devaneios - que, no fim, na verdade também são os meus.)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A Espera

Sentada no canto mais escuro da sala, ela esperava amedrontada a mãe. Seu cabelo louro, normalmente preso em duas marias-chiquinhas, estava bagunçado, embaraçado e sujo. Seu vestidinho cor-de-rosa, sempre tão limpo e engomado, naquele dia estava rasgado, enlameado e amassado.

Olhava em volta com seus olhinhos miúdos e castanhos analisando intensamente cada pessoa presente. Alguns homens com cara cansada conversavam com um outro grande, gordo e bigodudo. Ele se parecia muito com o Papai Noel. Mas não podia ser. Não era Natal, aquele lugar não era o pólo norte e os homens que estavam com ele não se pareciam com duendes. Não, não se pareciam nem um pouco com duendes. Duendes com certeza seriam mais sorridentes. E não usariam aqueles uniformes azuis tão tristes. Não. Na verdade, ela tinha quase certeza de que já havia visto moços parecidos com aqueles na televisão. Sim, diziam ser, como era mesmo? Ah, sim. Policiais.

Eles haviam falado com ela, disseram para que não ficasse com medo, que mamãe iria chegar logo. Ofereceram-lhe um pirulito de cereja. Mas ela odiava pirulitos de cereja. E sua mãe demorava muito. Ficar ali sozinha dava vontade de chorar.

Secou as lágrimas dos olhos com as costas das mãozinhas gorduchas. Lembrava-se da última vez que vira sua mãe. Estavam no shopping, há dois dias. As duas passeavam, havia muita gente. E ela queria tanto, mas tanto um sorvete que gritou, chorou e saiu correndo. Não devia ter feito aquilo. Não devia mesmo. Tinha muita, muita gente no shopping, e, quando ela deu por si, já estava perdida.

E foi então que a mulher apareceu. Baixinha, com os cabelos bem compridos e escuros e um sorriso calmo igual ao da sua mãe.

— Oi garotinha — disse ela — Você está perdida?

— Tô — respondeu Laurinha, começando a chorar — Você me ajuda a achar a minha mãe, tia?

— É claro, bonequinha. Vamos lá.

E Laurinha foi, pensando com alívio que em muito breve encontraria sua mãe e a abraçaria, pediria desculpas e diria que nunca mais faria uma coisa daquelas de novo. Mas a mulher não a levou até sua mãe.

— Tia, a minha mãe estava aqui no shopping... por quê estamos indo embora?

— Sua mãe está na minha casa, vamos até lá.

Ela começou a achar que havia alguma coisa muito errada ali. Por quê sua mãe estaria na casa daquela moça? Será que elas se conheciam?

Foi levada para uma casa pequena, com paredes verdes e uma janela quebrada. E descobriu que sua mãe não estava lá.

— Tia, onde está a minha mamãe? — perguntou Laurinha.

— Sua mãe foi embora pra sempre — respondeu a moça — Agora você vai morar aqui.

E Laurinha ficou lá, naquela casa triste com aquela moça má até os homens de uniforme nos carros barulhentos de luzes coloridas aparecerem. Chorou muito. Não podia acreditar que sua mãe havia ido embora para sempre. Ela nunca faria isso. Não deixaria que ficasse em um lugar como aquele, não, ela sabia. Sua mãe gostava muito dela. Ou será que não gostava? Os homens de uniforme a levaram para aquela sala dizendo que sua mãe estaria ali, esperando por ela. Mas a mamãe não estava. E não chegava nunca. Será que mamãe agora a odiava por ter gritado e saído correndo no shopping? Será que o que a moça má dissera era verdade e sua mãe havia mesmo ido embora para sempre? Será que...

As lágrimas começavam a rolar incontrolavelmente pelas suas bochechas rosadas quando ouviu as sirenes dos carros com as luzes coloridas. Laurinha gostava desses carros. Gostava da luz colorida que ficava em cima deles, gostava do fato de terem sido aqueles os carros que a tiraram da casa verde e triste e da moça má.

Esfregando o rosto, correu até a janela para observá-los melhor. Homens com uniforme saíam deles apressadamente. Um dos homens abriu a porta traseira de um dos carros e ajudou uma moça a descer. Cabelos pretos, calça jeans, blusa azul, e o rosto, tão bonito, agora vermelho e manchado de lágrimas.

— MAMÃE! — Laurinha gritou, o coração aos pulos.

— FILHA!!! — respondeu a mãe, sorrindo, correndo ao seu encontro.

E as duas ficaram ali, no meio da delegacia, por muito tempo apertadas em um silencioso abraço de alívio, saudade e amor incondicional.

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quinta-feira, 24 de maio de 2012

Capitã Zara Jenks

Mais uma de minhas personagens com a biografia atualizada.
Apresento-lhes Capitã Zara Jenks, a cigana-pirata que comanda um navio tripulado quase exclusivamente por mulheres.


Zara Jenks tem uma história de vida interessante que começa desde antes de sua concepção.

Certa vez, quando o mundo ainda era separado por sete mares e os monstros oceânicos ainda povoavam o desconhecido, um charmoso pirata inglês de nome John Jenks aportou determinada noite em um vilarejo litorâneo da Espanha. Enquanto embriagava-se para finalmente recuperar-se dos anos ao mar, uma bela cigana de cabelos vermelhos chamada Carmen perguntou-lhe se gostaria que lhe tirasse a sorte.

- Eu tiraria a sorte se tivesse você, bela jovem dos cabelos de fogo - respondeu o pirata.

Os dois amaram-se intensamente por três dias e três noites, até o momento da partida do navio de John. A despedida foi dolorosa, mas a breve paixão rendeu frutos. Nove meses após o romântico encontro nasceu a pequena Zara, com os olhos escuros do pai e os cabelos rubros da mãe.

Zara cresceu com sua mãe em meio à comunidade cigana, aprendendo todos os sortilégios e a sabedoria mágica de seu povo com as artes ocultas. Como sua progenitora, ela possuía um dom especial em seu sangue para as adivinhações e as magias de água. E, como seu pai, possuía uma enorme atração pelo mar.

Desde muito nova a pequena cigana de cabelos vermelhos gostava de passar horas a fio no cais, ouvindo maravilhada as histórias contadas pelos marujos sobre as terras desconhecidas e os tesouros perdidos que viram em suas viagens. Zara observava o mar com olhos sonhadores e almejava a liberdade de se navegar a esmo, com o vento nos cabelos e o sol no rosto até, quem sabe, o fim do mundo - ou ainda além.

Ao compartilhar suas aspirações com os homens do mar, porém, por todas as vezes recebia risadas irônicas e o inevitável comentário "Você é só uma menina!".

- Mas eu vou crescer! - respondeu Zara certa manhã, com indisfarçada irritação.

- E vai se tornar nada mais que uma mulher - disseram, sorrindo - Você sabe que levar uma mulher em um navio sempre deu azar.

- Quando eu me tornar a capitã do navio pirata mais temido dos sete mares é que vocês vão ver o azar que dá ter uma mulher em um navio - respondeu ela em tom de profecia.

E então, na manhã do dia em em que Zara completaria dezesseis anos, um navio vermelho sem bandeira aportou no cais do vilarejo. A cigana que aspirava ser pirata sentiu o coração dar um pulo: sua mãe lhe dissera mil vezes que o navio de seu pai possuía estas cores. Uma embarcação da cor do sangue, quantas mais haveriam no mundo? Será que seu pai finalmente voltara, depois de tantos anos? Será que ele a reconheceria? Seria aquela a sua chance de conhecer o além-mar?

Zara correu até o porto e perguntou pela tripulação do navio vermelho.

- Do Scalett Sky? Por quê? Eles estão devendo para alguém? - respondeu-lhe um homem de olhos escuros que cheirava a rum - Oi! - continuou ele, aproximando-se mais e observando-a atentamente - Você me lembra alguém...

O homem piscou algumas vezes e segurou uma mecha de seus cabelos.

- Oi! - exclamou ele - Mas como? Você é bruxa? Já faz tempo, você tinha que estar velha! - continuou, olhando-a nos olhos - E tem os olhos, esses olhos estão errados... Esses olhos são... Oi! esses olhos são meus!

- Acho... - respondeu Zara, extasiada - Acho que sou sua filha.

- Filha?! - disse o homem - Com mil cães sarnentos, FILHA?!

Passada a surpresa inicial, Zara pôs-se a contar quem era sua mãe e a história de sua concepção. Era essencial que ele se lembrasse. A sua chance de conhecer o mundo estava ali, cambaleando bêbada na sua frente!

- Batráquios me mordam, você realmente deve ser minha filha - disse ele sacando uma garrafa de rum da bolsa e bebendo um demorado gole - Eu me lembro da bela Camélia... Carmela... Carmem!, dos cabelos de fogo. Ela está viva, ainda? Tem todos os dentes?

À noite, Zara levou seu suposto pai para ver sua mãe. E não conteve a alegria quando viu que os dois reconheceram-se imediatamente:

- Você está mais velha - disse o pai de Zara - Mas ainda está linda.

- Você também. E continua cheirando rum.

Depois de deixá-los a sós pelo tempo que precisavam para se reconhecerem verdadeiramente, Zara expôs para seu pai seu desejo de conhecer o mar.

- Oi! - respondeu ele - Quer conhecer o mar, é? - continuou, analisando-a de cima a baixo - Sabe que você se parece comigo quando tinha a sua idade? Só que, claro, com peitos. E cabelos vermelhos.

- Minha mãe tinha me dito - disse Zara, abrindo uma garrafa de rum e passando-a ao pai - Você não quer mais um pouco de rum? Tem cerveja, também. E vinho, se preferir.

Na manhã seguinte, completamente bêbado, o pirata resolveu que seria uma excelente ideia ter a filha como parte da tripulação, afinal, ela era também uma cigana, seus sortilégios poderiam ser de bom uso contra as tropas da coroa ou comerciantes desavisados, e era sua filha, sangue do seu sangue, e...

- Por que eu trouxe você, mesmo? - perguntou ele naquela noite, já em alto-mar, em uma visível ressaca.

- Porque eu sou cigana e sua filha, lembra?

- Sei. Certo. Então vá lá, pegue umas garrafas de rum pra gente comemorar.

Navegaram bem à bordo do navio por dois anos. No terceiro ano de navegação, ela e seu pai maquinaram uma conspiração para tomar o comando do Scarlett Sky e instigaram a tripulação contra o capitão gordo do navio, William O'Higgins. Os dois eram agora Capitão John e Primeira-Imediata Zara, e desenvolveram uma amizade muito forte depois disso. Descobriram-se muito parecidos - e muito chegados em um rum.

Mas como nem tudo na vida é um mar de rosas, especialmente se você for Capitão e Primeira-Imediata de um navio pirata cuja tripulação você mesmo já ajudou a se rebelar, um belo dia os subordinados do Scarlett Sky decidiram que gostariam de um novo capitão, em especial algum cujo filho não fosse uma mulher cigana e primeira-imediata, e tornaram-se insubordinados.

A luta foi ferrenha, mas Zara e seu pai eram bons no que faziam. Com a ajuda de mais dois marujos de confiança massacraram os revoltosos e reassumiram o comando.

- Zara, minha filha - disse seu pai na noite seguinte à luta - Será que sua mãe ainda tem todos os dentes? Estou cansado dessa vida. Não tenho mais pique nem tripulação para continuar nesse navio. Vamos voltar para a Espanha.

- Eu não quero voltar - disse Zara - Descobri que meu coração pertence ao mar.

- É, sei. Você é nova, ainda. Bem, se você quer mesmo continuar, fique com o Scarlett. Você é minha primeira-imediata, de qualquer forma é capitã na minha ausência. Consiga uma tripulação melhor do que a que tínhamos e navegue por aí, pequena versão minha com peitos.

E este foi o início da lenda.

Depois de deixar o pai em terra e descobrir que praticamente nenhum marujo gostaria de enfrentar as agruras do oceano em um navio capitaneado por uma mulher, Zara convocou todas as mulheres que porventura tivessem o ímpeto de conhecer o mundo no sangue para compor sua tripulação e lançou-se ao mar em busca do fim do mundo.

Comandado por uma cigana e com uma tripulação quase exclusivamente feminina, o Scarlett Sky foi considerado um dos mais temíveis navios piratas da história dos sete mares.

- Mulheres no navio dão mesmo azar - diz Zara - Mas não para nós.

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(Em tempo: Zara é também prima distante do Capitão Jack Sparrow. E sim, eles tiveram um caso. XD)

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Timidez


E lá estava eu. O suor gelado que brotava de minhas mãos trêmulas poderia encher todo o reservatório de água da cidade. Eu não acredito, onde estava com a cabeça quando marcara aquele encontro?

Esperava sentado no banco do parque, como havíamos combinado. Já se passavam dez minutos do horário marcado. Será que ela não viria?

Acendi um cigarro. Um tipo de refúgio para a minha timidez: quando não sabia o que fazer, acendia um cigarro. Era um meio de manter-me ocupado. Um meio de passar o tempo, de não chamar a atenção. Um meio de ser idiota, eu sei, mas pelo menos com aquilo eu parecia mais seguro e ficava ligeiramente mais tranquilo.

Mas nem tanto. Ela já estava quinze minutos atrasada! Comecei a balançar as pernas impacientemente. Sentia-me muito mal em estar ali, sozinho. Todas as pessoas que passavam pareciam estar olhando para mim, me analisando, me criticando. Todas as risadas que ouvia pareciam estar acontecendo por minha causa. Eu estava começando a entrar em paranoia! Onde estava Luciana?

— Hã... ah, é... desculpa o atraso, hum... — disse uma voz feminina ao meu lado — Er... olá...

Sobressaltado, olhei na direção da voz e avistei a moça com quem sempre conversava na internet. Como era bonita! Ainda mais do que aparentava nas fotos que me mandara.

— Er... ah... hum... — engasguei — Oi.

“Imbecil!” havia uma voz dentro de mim dizendo. “Fale com ela como se fosse pela internet!”
Mas no mundo virtual era tudo tão mais fácil! Sentia-me um idiota. Percebia as bochechas queimando. Deveria estar parecendo um pimentão vermelho. Ainda bem que ventava muito e meus cabelos cacheados caiam por sobre meu rosto, escondendo um pouco aquela cara de tacho que eu sempre fazia nessas ocasiões. Eu estava terrivelmente travado. Conversávamos tanto online, e, agora, eu não conseguia pensar em nada, absolutamente nada para dizer. Nem um "oi, como vai?" queria sair da minha boca. Por quê diabos eu precisava ser tão tímido?!

Havia um silêncio tão palpável quanto o frio que fazia naquele dia de inverno entre nós.

— Hum, bem... — tomei coragem — Vamos... vamos tomar um sorvete?

Burro! Que frase estúpida para se dizer! Tomar um sorvete no frio?!

Mas, antes que ela pudesse responder, uma voz estridente gritou atrás de mim:

— Lu!!! Quanto tempo, menina!!! — disse uma mulher sardenta enquanto abraçava apertadamente minha amiga virtual  —  O que faz por aqui?!

— Ah... oi, Márcia — respondeu ela um tanto constrangida — Hum, este é o Jorge, o cara da internet sobre quem eu tinha te dito. Jorge, esta é Márcia, uma amiga minha.

— Ah! E aí, Jorginho! — disse a tal Márcia — Posso te chamar assim, né? — E, dando-me uma cotovelada, acrescentou — Se bem que, com esse seu tamanho, o mais adequado seria Jorjão, né? Jorjão, huuum — completou, rindo para mim.

Queria enterrar minha cabeça no chão. Respondi com um sorriso amarelo, e notei que Luciana também estava embaraçada.

— Ih, o moço ficou todo encabulado!! — atirou Márcia — Não fique assim, gato, a Lu também é toda tímida. Aliás — continuou a moça olhando para Luciana — marcou outro encontro pela internet, é? Preciso te dizer que desta vez você deu sorte, heim? — lançou-me uma piscadela — Só espero que você não faça como no último e vá embora sem falar nada — virou-se para mim enquanto Luciana enrubescia — Essa Lu é muito tímida. Você também, pelo jeito, heim? Tá todo vermelhão — disse, gargalhando.

A situação desenrolava-se de forma extremamente desagradável para mim e para Luciana. Eu não sabia mais o que fazer, o que falar, onde me esconder. Queria que o mundo acabasse naquele momento.

Mas Márcia parecia estar se divertindo muito com aquela conversa.

— Ai, gente, para quê ser desse jeito? Não funciona, meu. Mas, olha, eu sei o que é isso. A Lu aí me conheceu na outra época. Eu era tímida pra caramba, assim como vocês. Nem abria a boca, eu achava que todo mundo ia me achar chata.

Por quê será?, pensei.

— Mas aí  — continuou ela — fiz um curso tipo desses de vendas com atuação, saca?, e aprendi a ser desse jeito extrovertido, e tal, muito melhor do que ficar se borrando de medo de falar com os outros que nem vocês tão. — fez um pausa para respirar e emendou — Parece até um negócio tipo alcoólatras anônimos, isso de ex-tímido, heim? Rá rá rá! Fala aí, Lu, "Meu nome é Luciana e eu não consigo conversar com um cara". Rá rá rá!

Que constrangedor. Meu Deus, tende piedade! Que as trombetas soem, que o chão se abra e que comece o apocalipse!

— Ah, mas poxa vida, vocês não falam nada!! Sabe, se vocês quiserem eu posso passar o contato do curso que eu fiz, meu, foi a melhor coisa que me aconteceu, agora eu sou bocuda mesmo, e...

— Márcia — interrompi, a coragem crescendo proporcionalmente à irritação causada por aquela metralhadora verborrágica  — Olha só... esse curso que você falou... se eu fizer... vou ficar assim, tipo, igual a você?

— Isso! É só extroversão no rolê! Não é ótimo?

— Na verdade não — eu disse, calmamente — Acho que prefiro ser tímido a ser um babaca. E, desculpe, não era você que pensava que os outros te achariam chata. Você É chata. E muito. Passar bem.

Peguei Luciana pelo braço e, dando as costas à cara indignada da  Márcia, dirigi-me à sorveteria.

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(São Pedro, alguma data entre os anos de 2003 e 2004 - reescrito em 2012)

domingo, 20 de maio de 2012

O Primeiro Beijo


A garota permanecia parada no jardim, as mãos pequeninas suando frio e as pernas ligeiramente tortas tremendo levemente. Percebia as figuras imóveis à sua volta, bancos e mesas misturando-se às plantas na escuridão iluminada apenas pela lâmpada elétrica acima da sua cabeça. Ouvia os risinhos femininos abafados vindo por todos os lados, mas fingia não saber do que se tratava.

Enfiou às pressas uma bala de menta na boca, enquanto tentava o mais dissimuladamente possível controlar os pensamentos frenéticos que lhe assaltavam o cérebro. Esperava por aquele momento há tanto tempo e, finalmente, aquele seria o dia! Por tantas vezes havia visto nos filmes e novelas aqueles beijos dos casais apaixonados, sonhando com o dia em que... e ela já era quase uma moça, havia acabado de completar seus doze anos!

Aquela festinha não fora por acaso. Tivera todo o cuidado de planejá-la com antecedência, com a ajuda de suas melhores amigas, para que caísse no dia certo em que ele pudesse comparecer. Arranjaram CDs de música para se dançar pertinho, fizeram bailinho, tudo conforme o figurino. Ela se arrumara como quase nunca fazia, passando batom, repartindo o cabelo encaracolado em duas tranças, escolhendo sua melhor roupinha. Até então ia tudo de acordo, eles já haviam dançado, já haviam conversado, suas amigas já haviam falado com os amigos dele...

E ali estava ele, bem à sua frente.

Seu pequeno pé batia insistentemente no chão, acompanhando o descompasso acelerado de seu coração. Começou a brincar com o cabelo numa vã tentativa de esconder a timidez, pensando em alguma coisa para dizer-lhe enquanto tentava tomar coragem para olhar bem diretamente para aqueles olhos tão bonitos e tão simpáticos. Sua voz, porém, parecia ter tirado férias, enquanto seu olhar parecia ter sido irremediavelmente hipnotizado pelo botão amarelo da camiseta do garoto.

Endireitou sua blusinha cor-de-rosa, então, ao perceber que seu acompanhante prendia a respiração e dava um passo incerto em sua direção. Enrubesceu, olhou para o lado; seu hálito de hortelã misturava-se agora por completo com o perfume cítrico do menino. Via que suas cabeças agora aproximavam-se cada vez mais. A cada segundo ficavam mais próximas. Um leve arrepio percorreu-lhe a espinha. Estavam cada vez mais próximos, cada vez mais próximos... podia contar as sardas do rosto dele, se quisesse... mas, é claro, preferiu fazer outra coisa.

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(São Paulo, 09 de dezembro de 2008)