quinta-feira, 31 de maio de 2012

Nostalgia

Precisei arrumar meu armário por estes dias.

Buraco-negro que é, muitas coisas desaparecem em meio a túneis intergalácticos por trás daquelas portas de madeira e reaparecem séculos depois, empoeiradas e bêbadas, perguntando quem diabos são e se haverá lasanha à bolonhesa para viagem no jantar.

Encontrei um pote de sorvete esquecido desde o meu aniversário do ano passado com dois bombons e um chocolate com licor, seguramente escondidos para evitar possíveis intervenções gulosas de irmãs mais novas - mas que, talvez por vingança maligna das ditas-cujas, infelizmente estragaram-se antes que eu me lembrasse de sua existência e tornaram-se absolutamente não-comestíveis.

Encontrei também um tipo de nova civilização inteligente, composta de um emaranhado de fios de cabelo e tufos grossos de poeira cujo nível de desenvolvimento estava prestes a atingir o estágio espacial e cuja mitologia afirmava que, no Dia do Juízo Final, uma Terrível Besta Descabelada viria, empunhando o Maléfico Sugador Das Almas, e devastaria toda e qualquer forma de vida existente.

E encontrei, vejam só, algumas várias lembranças amarelecidas de um passado longínquo onde tudo era doce e intenso e minha vida era só poesia, emoções e garrafas de vinho.

Tombei fora os chocolates mofados, aspirei impiedosamente a civilização cabeluda.
E pendurei, carinhosamente e em pequenos potes ovais de cristal translúcido, as antigas lembranças fragmentadas no teto da minha alma.

...

Que saudade do meu cabelo roxo!


XD

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Bolha de sabão


Sentada na calçada, a criança brinca.
Tem um canudo e um copo em suas mãos.
Uma bolha de sabão vai se formando.

Transparente.
Brilhante.
Redondamente perfeita.

Flutua delicadamente, refletindo a luz colorida do Sol.

E então, um vento mais forte sopra.
Leva-a para longe.

Com um último rodopio,

POC!

A bolha estoura.

...

(São Paulo, 27 de junho de 2006)

terça-feira, 29 de maio de 2012

Devaneios de Olívia Rey



Três horas da manhã. Olívia revirava-se nos lençóis sem conseguir dormir. Pensamentos desconexos assaltavam-lhe a mente, um mais peculiar que o outro, um mais absurdo que o outro. Um mais doce que o outro.

- Maldita insônia! - pensou, levantando-se e dirigindo-se à varanda.

Acendeu um cigarro. Ridículo pseudo-refúgio da timidez e do nervosismo. Mas, e daí? Do seu esconderijo no milésimo andar podia espiar sem ser notada toda a vida noturna e secreta de uma cidade insone, incapaz de parar, incapaz de descansar, incapaz de...

- Assim como eu - pensou, dando uma longa tragada no cigarro.

O céu e a terra haviam invertido os papéis, ela pensava. As estrelas haviam caído e se alojado nas lâmpadas elétricas que se estendiam pelo horizonte, enquanto a Lua brilhava sozinha no firmamento, minguante e Capricorniana.

As frustrações todas de sua curta vida burguesa dançavam tango com os momentos de êxtase e felicidade num compasso dolorido e envolvente, paranóico, assustadoramente delicioso.

Passou a pensar em tudo o que poderia ter sido e não foi, em tudo o que não poderia ter sido e foi, em tudo o que poderia ser e de fato foi.

Deu outro longo trago no cigarro e apagou-o no cinzeiro de cristal falso. Olhou para o céu e desejou viver uma grande aventura, digna de livro de ficção. Queria viver algo pelo qual pudesse ser lembrada, algo que lhe permitisse ter histórias verdadeiras para contar. Algo relacionado a piratas espaciais, magos da idade das trevas ou até Terríveis Bestas Vorazes de Traal.

Será que ela estava no lugar certo, na hora certa, fazendo a coisa certa? Ou será que foi justamente o contrário o que aconteceu?

Ninguém nunca saberá.

O que se sabe é que alguma coisa certa estalou em seu cérebro com um ruído errado e Olívia Rey nunca mais foi - ou pôde ser - a mesma.

...

(Olívia Rey é minha única personagem que não tem biografia definida. Sua vida sempre foi tipicamente paulistana, tipicamente classe-média, tipicamente típica. Ela só existe em seus devaneios - que, no fim, na verdade também são os meus.)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A Espera

Sentada no canto mais escuro da sala, ela esperava amedrontada a mãe. Seu cabelo louro, normalmente preso em duas marias-chiquinhas, estava bagunçado, embaraçado e sujo. Seu vestidinho cor-de-rosa, sempre tão limpo e engomado, naquele dia estava rasgado, enlameado e amassado.

Olhava em volta com seus olhinhos miúdos e castanhos analisando intensamente cada pessoa presente. Alguns homens com cara cansada conversavam com um outro grande, gordo e bigodudo. Ele se parecia muito com o Papai Noel. Mas não podia ser. Não era Natal, aquele lugar não era o pólo norte e os homens que estavam com ele não se pareciam com duendes. Não, não se pareciam nem um pouco com duendes. Duendes com certeza seriam mais sorridentes. E não usariam aqueles uniformes azuis tão tristes. Não. Na verdade, ela tinha quase certeza de que já havia visto moços parecidos com aqueles na televisão. Sim, diziam ser, como era mesmo? Ah, sim. Policiais.

Eles haviam falado com ela, disseram para que não ficasse com medo, que mamãe iria chegar logo. Ofereceram-lhe um pirulito de cereja. Mas ela odiava pirulitos de cereja. E sua mãe demorava muito. Ficar ali sozinha dava vontade de chorar.

Secou as lágrimas dos olhos com as costas das mãozinhas gorduchas. Lembrava-se da última vez que vira sua mãe. Estavam no shopping, há dois dias. As duas passeavam, havia muita gente. E ela queria tanto, mas tanto um sorvete que gritou, chorou e saiu correndo. Não devia ter feito aquilo. Não devia mesmo. Tinha muita, muita gente no shopping, e, quando ela deu por si, já estava perdida.

E foi então que a mulher apareceu. Baixinha, com os cabelos bem compridos e escuros e um sorriso calmo igual ao da sua mãe.

— Oi garotinha — disse ela — Você está perdida?

— Tô — respondeu Laurinha, começando a chorar — Você me ajuda a achar a minha mãe, tia?

— É claro, bonequinha. Vamos lá.

E Laurinha foi, pensando com alívio que em muito breve encontraria sua mãe e a abraçaria, pediria desculpas e diria que nunca mais faria uma coisa daquelas de novo. Mas a mulher não a levou até sua mãe.

— Tia, a minha mãe estava aqui no shopping... por quê estamos indo embora?

— Sua mãe está na minha casa, vamos até lá.

Ela começou a achar que havia alguma coisa muito errada ali. Por quê sua mãe estaria na casa daquela moça? Será que elas se conheciam?

Foi levada para uma casa pequena, com paredes verdes e uma janela quebrada. E descobriu que sua mãe não estava lá.

— Tia, onde está a minha mamãe? — perguntou Laurinha.

— Sua mãe foi embora pra sempre — respondeu a moça — Agora você vai morar aqui.

E Laurinha ficou lá, naquela casa triste com aquela moça má até os homens de uniforme nos carros barulhentos de luzes coloridas aparecerem. Chorou muito. Não podia acreditar que sua mãe havia ido embora para sempre. Ela nunca faria isso. Não deixaria que ficasse em um lugar como aquele, não, ela sabia. Sua mãe gostava muito dela. Ou será que não gostava? Os homens de uniforme a levaram para aquela sala dizendo que sua mãe estaria ali, esperando por ela. Mas a mamãe não estava. E não chegava nunca. Será que mamãe agora a odiava por ter gritado e saído correndo no shopping? Será que o que a moça má dissera era verdade e sua mãe havia mesmo ido embora para sempre? Será que...

As lágrimas começavam a rolar incontrolavelmente pelas suas bochechas rosadas quando ouviu as sirenes dos carros com as luzes coloridas. Laurinha gostava desses carros. Gostava da luz colorida que ficava em cima deles, gostava do fato de terem sido aqueles os carros que a tiraram da casa verde e triste e da moça má.

Esfregando o rosto, correu até a janela para observá-los melhor. Homens com uniforme saíam deles apressadamente. Um dos homens abriu a porta traseira de um dos carros e ajudou uma moça a descer. Cabelos pretos, calça jeans, blusa azul, e o rosto, tão bonito, agora vermelho e manchado de lágrimas.

— MAMÃE! — Laurinha gritou, o coração aos pulos.

— FILHA!!! — respondeu a mãe, sorrindo, correndo ao seu encontro.

E as duas ficaram ali, no meio da delegacia, por muito tempo apertadas em um silencioso abraço de alívio, saudade e amor incondicional.

...

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Dia da Toalha

NÃO ENTRE EM PÂNICO!!


Interrompemos a nossa programação normal para um comunicado especial de suma importância para todos os Mochileiros das Galáxias que desejam viajar pelo Universo gastando apenas trinta dólares altairianos por dia:

NUNCA SE ESQUEÇA ONDE COLOCOU SUA TOALHA!

Obrigada.

...

Um bom Dia Da Toalha, colegas mochileiros!!


(Em tempo: Se algum alienígena interessado em cultura humana estiver lendo isso aqui, saiba que eu sou -quase- historiadora e, bem, se você tiver uma nave espacial e quiser me dar uma carona eu prometo que conto tudo o que há para se saber de mais interessante -ou não- sobre essa espécie ridícula e limitada que evoluiu dos primatas enquanto tomamos Dinamites Pangalácticas no Restaurante No Fim Do Universo. Aguardo resposta.)


42.


"Ô seu moço do disco voador, me leve com você, pra onde você for! Ô seu moço, mas não me deixe aqui enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí!"

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Capitã Zara Jenks

Mais uma de minhas personagens com a biografia atualizada.
Apresento-lhes Capitã Zara Jenks, a cigana-pirata que comanda um navio tripulado quase exclusivamente por mulheres.


Zara Jenks tem uma história de vida interessante que começa desde antes de sua concepção.

Certa vez, quando o mundo ainda era separado por sete mares e os monstros oceânicos ainda povoavam o desconhecido, um charmoso pirata inglês de nome John Jenks aportou determinada noite em um vilarejo litorâneo da Espanha. Enquanto embriagava-se para finalmente recuperar-se dos anos ao mar, uma bela cigana de cabelos vermelhos chamada Carmen perguntou-lhe se gostaria que lhe tirasse a sorte.

- Eu tiraria a sorte se tivesse você, bela jovem dos cabelos de fogo - respondeu o pirata.

Os dois amaram-se intensamente por três dias e três noites, até o momento da partida do navio de John. A despedida foi dolorosa, mas a breve paixão rendeu frutos. Nove meses após o romântico encontro nasceu a pequena Zara, com os olhos escuros do pai e os cabelos rubros da mãe.

Zara cresceu com sua mãe em meio à comunidade cigana, aprendendo todos os sortilégios e a sabedoria mágica de seu povo com as artes ocultas. Como sua progenitora, ela possuía um dom especial em seu sangue para as adivinhações e as magias de água. E, como seu pai, possuía uma enorme atração pelo mar.

Desde muito nova a pequena cigana de cabelos vermelhos gostava de passar horas a fio no cais, ouvindo maravilhada as histórias contadas pelos marujos sobre as terras desconhecidas e os tesouros perdidos que viram em suas viagens. Zara observava o mar com olhos sonhadores e almejava a liberdade de se navegar a esmo, com o vento nos cabelos e o sol no rosto até, quem sabe, o fim do mundo - ou ainda além.

Ao compartilhar suas aspirações com os homens do mar, porém, por todas as vezes recebia risadas irônicas e o inevitável comentário "Você é só uma menina!".

- Mas eu vou crescer! - respondeu Zara certa manhã, com indisfarçada irritação.

- E vai se tornar nada mais que uma mulher - disseram, sorrindo - Você sabe que levar uma mulher em um navio sempre deu azar.

- Quando eu me tornar a capitã do navio pirata mais temido dos sete mares é que vocês vão ver o azar que dá ter uma mulher em um navio - respondeu ela em tom de profecia.

E então, na manhã do dia em em que Zara completaria dezesseis anos, um navio vermelho sem bandeira aportou no cais do vilarejo. A cigana que aspirava ser pirata sentiu o coração dar um pulo: sua mãe lhe dissera mil vezes que o navio de seu pai possuía estas cores. Uma embarcação da cor do sangue, quantas mais haveriam no mundo? Será que seu pai finalmente voltara, depois de tantos anos? Será que ele a reconheceria? Seria aquela a sua chance de conhecer o além-mar?

Zara correu até o porto e perguntou pela tripulação do navio vermelho.

- Do Scalett Sky? Por quê? Eles estão devendo para alguém? - respondeu-lhe um homem de olhos escuros que cheirava a rum - Oi! - continuou ele, aproximando-se mais e observando-a atentamente - Você me lembra alguém...

O homem piscou algumas vezes e segurou uma mecha de seus cabelos.

- Oi! - exclamou ele - Mas como? Você é bruxa? Já faz tempo, você tinha que estar velha! - continuou, olhando-a nos olhos - E tem os olhos, esses olhos estão errados... Esses olhos são... Oi! esses olhos são meus!

- Acho... - respondeu Zara, extasiada - Acho que sou sua filha.

- Filha?! - disse o homem - Com mil cães sarnentos, FILHA?!

Passada a surpresa inicial, Zara pôs-se a contar quem era sua mãe e a história de sua concepção. Era essencial que ele se lembrasse. A sua chance de conhecer o mundo estava ali, cambaleando bêbada na sua frente!

- Batráquios me mordam, você realmente deve ser minha filha - disse ele sacando uma garrafa de rum da bolsa e bebendo um demorado gole - Eu me lembro da bela Camélia... Carmela... Carmem!, dos cabelos de fogo. Ela está viva, ainda? Tem todos os dentes?

À noite, Zara levou seu suposto pai para ver sua mãe. E não conteve a alegria quando viu que os dois reconheceram-se imediatamente:

- Você está mais velha - disse o pai de Zara - Mas ainda está linda.

- Você também. E continua cheirando rum.

Depois de deixá-los a sós pelo tempo que precisavam para se reconhecerem verdadeiramente, Zara expôs para seu pai seu desejo de conhecer o mar.

- Oi! - respondeu ele - Quer conhecer o mar, é? - continuou, analisando-a de cima a baixo - Sabe que você se parece comigo quando tinha a sua idade? Só que, claro, com peitos. E cabelos vermelhos.

- Minha mãe tinha me dito - disse Zara, abrindo uma garrafa de rum e passando-a ao pai - Você não quer mais um pouco de rum? Tem cerveja, também. E vinho, se preferir.

Na manhã seguinte, completamente bêbado, o pirata resolveu que seria uma excelente ideia ter a filha como parte da tripulação, afinal, ela era também uma cigana, seus sortilégios poderiam ser de bom uso contra as tropas da coroa ou comerciantes desavisados, e era sua filha, sangue do seu sangue, e...

- Por que eu trouxe você, mesmo? - perguntou ele naquela noite, já em alto-mar, em uma visível ressaca.

- Porque eu sou cigana e sua filha, lembra?

- Sei. Certo. Então vá lá, pegue umas garrafas de rum pra gente comemorar.

Navegaram bem à bordo do navio por dois anos. No terceiro ano de navegação, ela e seu pai maquinaram uma conspiração para tomar o comando do Scarlett Sky e instigaram a tripulação contra o capitão gordo do navio, William O'Higgins. Os dois eram agora Capitão John e Primeira-Imediata Zara, e desenvolveram uma amizade muito forte depois disso. Descobriram-se muito parecidos - e muito chegados em um rum.

Mas como nem tudo na vida é um mar de rosas, especialmente se você for Capitão e Primeira-Imediata de um navio pirata cuja tripulação você mesmo já ajudou a se rebelar, um belo dia os subordinados do Scarlett Sky decidiram que gostariam de um novo capitão, em especial algum cujo filho não fosse uma mulher cigana e primeira-imediata, e tornaram-se insubordinados.

A luta foi ferrenha, mas Zara e seu pai eram bons no que faziam. Com a ajuda de mais dois marujos de confiança massacraram os revoltosos e reassumiram o comando.

- Zara, minha filha - disse seu pai na noite seguinte à luta - Será que sua mãe ainda tem todos os dentes? Estou cansado dessa vida. Não tenho mais pique nem tripulação para continuar nesse navio. Vamos voltar para a Espanha.

- Eu não quero voltar - disse Zara - Descobri que meu coração pertence ao mar.

- É, sei. Você é nova, ainda. Bem, se você quer mesmo continuar, fique com o Scarlett. Você é minha primeira-imediata, de qualquer forma é capitã na minha ausência. Consiga uma tripulação melhor do que a que tínhamos e navegue por aí, pequena versão minha com peitos.

E este foi o início da lenda.

Depois de deixar o pai em terra e descobrir que praticamente nenhum marujo gostaria de enfrentar as agruras do oceano em um navio capitaneado por uma mulher, Zara convocou todas as mulheres que porventura tivessem o ímpeto de conhecer o mundo no sangue para compor sua tripulação e lançou-se ao mar em busca do fim do mundo.

Comandado por uma cigana e com uma tripulação quase exclusivamente feminina, o Scarlett Sky foi considerado um dos mais temíveis navios piratas da história dos sete mares.

- Mulheres no navio dão mesmo azar - diz Zara - Mas não para nós.

...

(Em tempo: Zara é também prima distante do Capitão Jack Sparrow. E sim, eles tiveram um caso. XD)

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Timidez


E lá estava eu. O suor gelado que brotava de minhas mãos trêmulas poderia encher todo o reservatório de água da cidade. Eu não acredito, onde estava com a cabeça quando marcara aquele encontro?

Esperava sentado no banco do parque, como havíamos combinado. Já se passavam dez minutos do horário marcado. Será que ela não viria?

Acendi um cigarro. Um tipo de refúgio para a minha timidez: quando não sabia o que fazer, acendia um cigarro. Era um meio de manter-me ocupado. Um meio de passar o tempo, de não chamar a atenção. Um meio de ser idiota, eu sei, mas pelo menos com aquilo eu parecia mais seguro e ficava ligeiramente mais tranquilo.

Mas nem tanto. Ela já estava quinze minutos atrasada! Comecei a balançar as pernas impacientemente. Sentia-me muito mal em estar ali, sozinho. Todas as pessoas que passavam pareciam estar olhando para mim, me analisando, me criticando. Todas as risadas que ouvia pareciam estar acontecendo por minha causa. Eu estava começando a entrar em paranoia! Onde estava Luciana?

— Hã... ah, é... desculpa o atraso, hum... — disse uma voz feminina ao meu lado — Er... olá...

Sobressaltado, olhei na direção da voz e avistei a moça com quem sempre conversava na internet. Como era bonita! Ainda mais do que aparentava nas fotos que me mandara.

— Er... ah... hum... — engasguei — Oi.

“Imbecil!” havia uma voz dentro de mim dizendo. “Fale com ela como se fosse pela internet!”
Mas no mundo virtual era tudo tão mais fácil! Sentia-me um idiota. Percebia as bochechas queimando. Deveria estar parecendo um pimentão vermelho. Ainda bem que ventava muito e meus cabelos cacheados caiam por sobre meu rosto, escondendo um pouco aquela cara de tacho que eu sempre fazia nessas ocasiões. Eu estava terrivelmente travado. Conversávamos tanto online, e, agora, eu não conseguia pensar em nada, absolutamente nada para dizer. Nem um "oi, como vai?" queria sair da minha boca. Por quê diabos eu precisava ser tão tímido?!

Havia um silêncio tão palpável quanto o frio que fazia naquele dia de inverno entre nós.

— Hum, bem... — tomei coragem — Vamos... vamos tomar um sorvete?

Burro! Que frase estúpida para se dizer! Tomar um sorvete no frio?!

Mas, antes que ela pudesse responder, uma voz estridente gritou atrás de mim:

— Lu!!! Quanto tempo, menina!!! — disse uma mulher sardenta enquanto abraçava apertadamente minha amiga virtual  —  O que faz por aqui?!

— Ah... oi, Márcia — respondeu ela um tanto constrangida — Hum, este é o Jorge, o cara da internet sobre quem eu tinha te dito. Jorge, esta é Márcia, uma amiga minha.

— Ah! E aí, Jorginho! — disse a tal Márcia — Posso te chamar assim, né? — E, dando-me uma cotovelada, acrescentou — Se bem que, com esse seu tamanho, o mais adequado seria Jorjão, né? Jorjão, huuum — completou, rindo para mim.

Queria enterrar minha cabeça no chão. Respondi com um sorriso amarelo, e notei que Luciana também estava embaraçada.

— Ih, o moço ficou todo encabulado!! — atirou Márcia — Não fique assim, gato, a Lu também é toda tímida. Aliás — continuou a moça olhando para Luciana — marcou outro encontro pela internet, é? Preciso te dizer que desta vez você deu sorte, heim? — lançou-me uma piscadela — Só espero que você não faça como no último e vá embora sem falar nada — virou-se para mim enquanto Luciana enrubescia — Essa Lu é muito tímida. Você também, pelo jeito, heim? Tá todo vermelhão — disse, gargalhando.

A situação desenrolava-se de forma extremamente desagradável para mim e para Luciana. Eu não sabia mais o que fazer, o que falar, onde me esconder. Queria que o mundo acabasse naquele momento.

Mas Márcia parecia estar se divertindo muito com aquela conversa.

— Ai, gente, para quê ser desse jeito? Não funciona, meu. Mas, olha, eu sei o que é isso. A Lu aí me conheceu na outra época. Eu era tímida pra caramba, assim como vocês. Nem abria a boca, eu achava que todo mundo ia me achar chata.

Por quê será?, pensei.

— Mas aí  — continuou ela — fiz um curso tipo desses de vendas com atuação, saca?, e aprendi a ser desse jeito extrovertido, e tal, muito melhor do que ficar se borrando de medo de falar com os outros que nem vocês tão. — fez um pausa para respirar e emendou — Parece até um negócio tipo alcoólatras anônimos, isso de ex-tímido, heim? Rá rá rá! Fala aí, Lu, "Meu nome é Luciana e eu não consigo conversar com um cara". Rá rá rá!

Que constrangedor. Meu Deus, tende piedade! Que as trombetas soem, que o chão se abra e que comece o apocalipse!

— Ah, mas poxa vida, vocês não falam nada!! Sabe, se vocês quiserem eu posso passar o contato do curso que eu fiz, meu, foi a melhor coisa que me aconteceu, agora eu sou bocuda mesmo, e...

— Márcia — interrompi, a coragem crescendo proporcionalmente à irritação causada por aquela metralhadora verborrágica  — Olha só... esse curso que você falou... se eu fizer... vou ficar assim, tipo, igual a você?

— Isso! É só extroversão no rolê! Não é ótimo?

— Na verdade não — eu disse, calmamente — Acho que prefiro ser tímido a ser um babaca. E, desculpe, não era você que pensava que os outros te achariam chata. Você É chata. E muito. Passar bem.

Peguei Luciana pelo braço e, dando as costas à cara indignada da  Márcia, dirigi-me à sorveteria.

...


(São Pedro, alguma data entre os anos de 2003 e 2004 - reescrito em 2012)

terça-feira, 22 de maio de 2012

O Barquinho de Papel Vermelho


Havia um barquinho de papel vermelho na banheira.

Ele navegava feliz, imaginando ser aquele o oceano.

Seus horizontes estendiam-se aos azulejos cirurgicamente brancos do banheiro e ao pequeno quadrado azul de céu que aparecia pela janela.

Seu único companheiro era um patinho de borracha amarelo e mudo.

Juntos, subiam e desciam pelas quase ondas e estavam certos de que aquilo era tudo o que se poderia existir.

Um dia, tiraram a tampa do ralo e o barquinho desceu pelo esgoto. Seu amigo patinho de borracha não o acompanhou.

Em seu trajeto pelo submundo, o barquinho descobriu que havia muito mais para se conhecer do que jamais pudera imaginar, e refletiu sobre como pôde ter passado tanto tempo acreditando que o mundo se reduzia a azulejos brancos e um pequeno quadrado de céu azul.

Quando deu por si, porém, já não era mais um barquinho de papel vermelho, era um composto amassado de sujeira marrom.

— E, que coisa!, descobriu-se muito mais vivo assim.

...

No Circo das Contradições Pululantes

Bem-vindo ao Circo das Contradições Pululantes!

Pegue uma pipoca caramelada e sente-se na primeira fila. Mas abra bem o guarda-chuva: os hipopótamos costumam espirrar na platéia enquanto dormem.

Gostaria de uma intensidade bem servida com dois dedinhos de conhaque e uma rodela de quimera enquanto assiste ao espetáculo?

Quando a cortina se levantar, abra bem os olhos e observe a transmutação daquele céu de caleidoscópio.

Veja a bela e imponente Vênus, geminiana como palavras ao vento, pavoneando-se num céu ascendendo Aquário.

Veja a brilhante e profunda Lua, confortavelmente canceriana, sentindo apaixonadamente todos os amores e pesares dos mundos.

Veja a agridoce menina de sabão, vestida de olhares, dançando ciranda com sorrisos e flertando sem pudores com o fracasso.

Veja a si mesmo, assim, sem querer. Neste picadeiro de ilusão todos são o que gostariam de ser.

...

O que você gostaria de ser?

...

Vou ali beber todas as cervejas do multiverso enquanto minha razão é sugada por um buraco-negro e já volto.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O Inventor Leprechaun Resolvedor De Problemas da FFLCH


Existem alguns dias em que a realidade fica terrivelmente cansada da rotina e tira uns momentinhos de folga, toma uma cerveja e assiste calmamente ao jogo do Corinthians.

Aquele era exatamente um daqueles dias.

Era hora do almoço e tudo corria na mais completa normalidade. Eu havia acabado de almoçar no bandejão da química na USP e pensava distraidamente que estava sem nem um mísero cigarro no bolso para ajudar a fazer a digestão daquela pasta que diziam ser comida saudável e saborosa - só que ao contrário - e que já começava a pesar feito bigorna em meu estômago.

Foi então que o inventor leprechaun resolvedor de problemas apareceu. Bem, a princípio ele parecia ser apenas mais um estudante qualquer da FFLCH: tinha barba e cabelos loiros, compridos e emaranhados e parecia não tomar um bom banho há pelo menos uma semana. Era baixo, devia ter ainda menos que um metro e meio, e usava um pingente de cristal do tamanho da minha palma pendurado ao pescoço. Parecia-se com um duende, mesmo, pequeno, mirrado e cabeludo. Eu imaginava o quão excêntrico ou pseudo-esotérico aquele moço poderia ser quando ele me cumprimentou:

- Oi! - disse-me.

- Ah, oi - respondi. Seria possível que eu o conhecesse e não estivesse me lembrando? Isso já acontecera algumas vezes. Esta que aqui vos escreve fica sociável demais depois de algumas cervejas, e a memória, careta que é, não gosta muito de acompanhá-la. Mas aquele moço era um completo desconhecido: se eu o tivesse conhecido antes com certeza já teria escrito algum texto qualquer com um personagem como ele.

- Você está com algum problema? - perguntou-me.

Encarei-o. Que tipo de problemas eu poderia ter? Digestivos, talvez, devido à carne moída à fantasia recém engolida? Ou psicológicos, quem sabe, por ser estagiária em um ambiente cheio de peixes grandes? De qualquer forma, quando um tipo fefelechento bizarro com um penduricalho brilhante no pescoço lhe pergunta gratuitamente se você está com algum problema, de fato você deve estar com algum problema.

- Ah, é...

- É porque eu sou um resolvedor de problemas, sabe - continuou o moço - Posso resolver qualquer problema. Menos problemas financeiros, né, porque estou passando por uma fase difícil de conseguir grana. Eu criei um tipo de colisor de elétrons portátil há uns dois meses e não saiu o dinheiro da minha patente, ainda.

Oi? Eu escutei direito? O cara disse que havia criado um colisor de elétrons? Um colisor de elétrons portátil?!

- Puxa, que coisa. É, essas coisas demoram para sair, mesmo - eu respondi, meio desnorteada. O que mais eu poderia responder?

- É, demoram sim. Só que aí fica difícil viver com isso. Eu estou pensando seriamente em começar a vender jóias para ver se consigo dinheiro. Porque eu crio jóias, também, sabe?

Um inventor de um colisor de elétrons portátil que cria jóias. Certo.

- Mas não sei se eu mesmo vou manufaturar as jóias ou vou se vou vender os desenhos para alguma joalheria. Eu tenho tudo o que preciso para fazer, sabe, as pedras, e tal. Mas estou meio sem tempo. E sem dinheiro pra investir, também.

- Hum. É.

- O dinheiro que eu tinha ganhado com meu antigravitacional já acabou.

- Com o seu o quê?

- Antigravitacional. Eu criei um sistema antigravitacional alguns anos atrás. Os helicópteros e aviões já estão usando esse sistema, é claro. Se não estivessem, como você acha que eles poderiam ficar tanto tempo no ar, voando, pesando tantas toneladas?

Mas é claro. Como eu nunca havia pensado nisso? Físicos, para o inferno com a aerodinâmica.

- Que legal. Você é um inventor, então - eu disse, dando trela.

- Ah, sim, gosto muito de criar coisas - continuou o moço - Mas, sabe qual é o problema? As pessoas criam as coisas que eu criei primeiro e ficam com todo o crédito.

Ah, eu sei. Eu também já passei por isso. Por muitas vezes achei que tinha tido uma ideia genial e original e logo depois descobri que a mesma já tinha sido brilhantemente elaborada por outra pessoa há pelo menos uns vinte anos antes dos meus pais sequer cogitarem a possibilidade de me deixarem nascer.

- Isso é complicado, né, ter uma ideia que alguém já teve mesmo sem nunca ter tido contato com ela.

- Não, não é isso! Acontece que as pessoas me veem dentro da cabeça delas criando coisas e acham que foram elas mesmas que criaram essas coisas que eu crio. Mas na verdade fui eu! Eu é que pensei nelas, sozinho. E como eu pensei a ideia dentro da cabeça delas, essas pessoas acabam ganhando todo o mérito pela minha invenção. Muito ruim, isso.

- As pessoas te veem dentro da cabeça delas tendo ideias e ganham todo o mérito pela sua invenção - repeti numa vã tentativa de que aquilo fizesse mais sentido - Hum. Porra, muito ruim, isso. De fato.

- Mas faz parte, não tem problema. Aliás, por falar em problema, você ainda não me falou qual é o seu problema! Vamos, não posso resolver o seu problema sem que antes você me diga qual é.

Meu caro, se um de nós dois aqui tem qualquer tipo problema, estou inclinada a pensar que definitivamente não sou eu.

- Bem - eu disse - Na verdade, meus cigarros acabaram.

O inventor rapidamente sacou um maço pela metade de Marlboro vermelho e entregou-me, sorrindo de orelha a orelha, três lindos cigarros.

- Problema resolvido! - disse ele dando um pulinho - Viu só como eu sou um resolvedor de problemas?

E foi-se embora, desaparecendo por completo no minuto seguinte. Acendi um cigarro e traguei-o longamente. A realidade voltava, finalmente, ligeiramente ébria e puta da vida com o Corinthians.


...


Olá, meu nome é Ana Carolina e eu sou para-raio de malucos.

domingo, 20 de maio de 2012

O Primeiro Beijo


A garota permanecia parada no jardim, as mãos pequeninas suando frio e as pernas ligeiramente tortas tremendo levemente. Percebia as figuras imóveis à sua volta, bancos e mesas misturando-se às plantas na escuridão iluminada apenas pela lâmpada elétrica acima da sua cabeça. Ouvia os risinhos femininos abafados vindo por todos os lados, mas fingia não saber do que se tratava.

Enfiou às pressas uma bala de menta na boca, enquanto tentava o mais dissimuladamente possível controlar os pensamentos frenéticos que lhe assaltavam o cérebro. Esperava por aquele momento há tanto tempo e, finalmente, aquele seria o dia! Por tantas vezes havia visto nos filmes e novelas aqueles beijos dos casais apaixonados, sonhando com o dia em que... e ela já era quase uma moça, havia acabado de completar seus doze anos!

Aquela festinha não fora por acaso. Tivera todo o cuidado de planejá-la com antecedência, com a ajuda de suas melhores amigas, para que caísse no dia certo em que ele pudesse comparecer. Arranjaram CDs de música para se dançar pertinho, fizeram bailinho, tudo conforme o figurino. Ela se arrumara como quase nunca fazia, passando batom, repartindo o cabelo encaracolado em duas tranças, escolhendo sua melhor roupinha. Até então ia tudo de acordo, eles já haviam dançado, já haviam conversado, suas amigas já haviam falado com os amigos dele...

E ali estava ele, bem à sua frente.

Seu pequeno pé batia insistentemente no chão, acompanhando o descompasso acelerado de seu coração. Começou a brincar com o cabelo numa vã tentativa de esconder a timidez, pensando em alguma coisa para dizer-lhe enquanto tentava tomar coragem para olhar bem diretamente para aqueles olhos tão bonitos e tão simpáticos. Sua voz, porém, parecia ter tirado férias, enquanto seu olhar parecia ter sido irremediavelmente hipnotizado pelo botão amarelo da camiseta do garoto.

Endireitou sua blusinha cor-de-rosa, então, ao perceber que seu acompanhante prendia a respiração e dava um passo incerto em sua direção. Enrubesceu, olhou para o lado; seu hálito de hortelã misturava-se agora por completo com o perfume cítrico do menino. Via que suas cabeças agora aproximavam-se cada vez mais. A cada segundo ficavam mais próximas. Um leve arrepio percorreu-lhe a espinha. Estavam cada vez mais próximos, cada vez mais próximos... podia contar as sardas do rosto dele, se quisesse... mas, é claro, preferiu fazer outra coisa.

...

(São Paulo, 09 de dezembro de 2008)

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Chocolates


Uma garotinha de cinco anos disse-me certa vez:
— Tudo fica tão melhor quando se come chocolates!
Quem diria,
Tão pequena e já tão sabida das metafísicas do mundo.

...

Deixemos, pois, a vida mais chocolate.


quinta-feira, 17 de maio de 2012

Em um quarto de motel


O quarto estava escuro. A única iluminação provinha de um toco de vela aceso no meio da mesa. A mulher deitada na cama acordou num sobressalto, esquecendo-se por alguns instantes de onde estava e o que fazia ali. O homem ao seu lado ainda dormia.

A mulher sentou-se aflita na cama. Com tal movimento um cheiro adocicado de mofo invadiu-lhe as narinas, fazendo-a perceber que estava num quarto de um motel decadente. Forçando os olhos para enxergar na escuridão, distinguiu o brilho fraco das garrafas de vodka vazias sob a chama da vela. Eram muitas.

Sua garganta começou a queimar. Agora se lembrava. Sentia as lágrimas subindo, mas não podia chorar. Não teria sido um sonho? Abaixou a cabeça e os cabelos claros desgrenhados encobriram sua face pálida. Deu um soluço seco e engoliu o choro.

O homem ao seu lado abriu os olhos e fixou o olhar na figura descabelada da esposa. Ela retribuiu-lhe o olhar, e assim permaneceram por alguns segundos, cúmplices.

Ele virou-se para ela e beijou-a demoradamente. Ela afastou-o em seguida, não conseguiria segurar as lágrimas por muito mais tempo. Levantou-se, ligeiramente enjoada, e por pouco não tropeçou no vulto que jazia no chão oculto pelas sombras.

Ela olhou para o marido, lívida. Sentia em seus pés um líquido quente, viscoso. Ele retribuiu seu olhar balançando ligeiramente a cabeça, numa afirmação. Era tudo, estava feito. Fora real.

Ele levantou-se bruscamente e a abraçou de uma maneira que nunca antes a havia abraçado. Em seguida abriu a porta do quarto e desceu correndo as escadas. Ela olhou mais uma vez para o vulto estendido no chão, sufocou outro soluço e saiu, batendo a porta atrás de si.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Gladys Wellgood

Fiquei com vontade de reformular as biografias das minhas personagens. Aqui vai a da Gladys, a "quase quarentona bêbada norte-americana que mora num trailler e tem uma penca de filho" XD


Esta aí em cima chama-se Gladys Wellgood. No auge da decadência dos seus trinta e nove anos, mora há quase quinze num trailler no Texas, bem próximo à fronteira com o México, e tem sete filhos; cinco meninos e duas meninas.

Gladys nasceu em uma típica família da periferia norte-americana. Seu pai era revendedor de carros - adquiridos não necessariamente de forma lícita - e sua mãe vendia cosméticos no bairro. Teve dois irmãos, dos quais um foi assassinado por policiais na semana em que completaria dezessete anos e o outro trocou de sexo e casou-se com o pastor da igreja anglicana que sua família costumava frequentar.

Ela odiava seu pai, que batia em sua mãe, e odiava sua mãe, que passava a maior parte do tempo completamente alterada pela heroína. Tinha especial apreço pelo irmão mais velho, que morreu, e ignorava totalmente o mais novo, que hoje atende pelo nome de Guinevere.

Quando tinha por volta de catorze anos, seu pai um dia chegou completamente embriagado em casa e partiu para cima dela. Sua mãe gritou, os dois estapearam-se, Gladys jogou uma torradeira na cabeça de seu pai, sua mãe desmaiou e ela fugiu de casa no mesmo dia. Passou dois dias perambulando pelas ruas da cidade bebendo qualquer coisa alcoólica que caísse em suas mãos e fumando tudo o que seus ainda jovens pulmões pudessem aguentar. Voltou quando o dinheiro acabou, mas apenas porque sua mãe, tendo-a encontrado no meio-fio de uma loja de conveniências, implorou de joelhos para que voltasse para casa.

Alguns meses depois, durante a comemoração junkie do seu aniversário de quinze anos na casa de alguns amigos, conheceu Abelardo Castañed, um mexicano charmoso de uns vinte e seis anos. Sua mãe acabara de ser internada em uma clínica para reabilitação e seu irmão morrera há apenas algumas semanas. Resolveu então fugir com o mexicano naquela mesma noite. Nada havia mais para ela naquele lugar.

Gladys morou com Abelardo em seu apartamento por volta de um ano, até engravidar de seu primeiro filho, Evo. Alguns meses após o nascimento do filho, o mexicano um belo dia saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou.

Começou a trabalhar como garçonete em uma lanchonete de estrada para sustentar a si, a casa e ao filho. "Pelo menos tenho um lugar onde morar", obrigava-se a pensar.

Cerca de um ano e meio depois, durante seu expediente de trabalho, conheceu Isaiah Johnson, um sério corretor da bolsa de valores de vinte e cinco anos de idade. Saíram algumas vezes, ele lhe segredou que a amava e que gostaria de criar o filho dela como se fosse seu e casaram-se pouco tempo depois. Ela engravidou após alguns meses de sua segunda filha, a quem deu o nome de Nicole, e eram felizes assim. Havia-se passado cerca de apenas dois anos de matrimônio, porém, quando Isaiah foi assassinado durante um assalto, deixando Gladys sozinha mais uma vez.

Precisando sustentar mais uma pequena boca, Gladys deixava agora seus filhos com Dona Martina, uma senhora que ia quase se decompondo de tantos anos que carregava nas costas, e trabalhava incessantemente em um restaurante barato na borda da cidade. Foi durante este período que começou a beber em demasia e a experimentar psico-ativos mais intensos. Não aguentava ficar tanto tempo longe dos filhos, não aguentava precisar atender clientes estúpidos em troca de alguns trocados, não aguentava aquela merda de vida em que tinha se enfiado. Dona Martina uma vez dissera que aquilo era castigo de Deus pelo seu irmão ter renegado quem era e pervertido um santo homem da Igreja. Levou um soco na boca por isso.

Uma noite, durante seu expediente, alguns dias depois de uma mulher mais velha rodeada por dois homens robustos e mal-encarados aparecer em sua casa dizendo-se esposa legítima de Isaiah e reivindicando o apartamento como seu, Gladys conheceu um homem muito galante e simpático chamado Robert Davish. Ele havia acabado de comprar um trailler, e era absolutamente bonito, gentil e atencioso. Passaram a encontrar-se algumas vezes e, depois que a dita esposa de Isaiah ameaçou-a de morte para que saísse de seu apartamento, resolveram casar-se e mudar para o trailler de Robert. Com ele, Gladys teve seu terceiro filho, Henry. Moraram juntos durante quatro longos e felizes anos, até que Robert descobriu-se gay. Deixou um bilhete dizendo que gostava muito de Gladys, mas que amava outra pessoa. Deixou o trailler e alguns maços de dinheiro para ela e foi embora com o garoto que vendia jornais.

Por dois anos Gladys morou sozinha no trailler com seus três filhos, fazendo bicos aqui e ali para sustentar a família, exagerando na quantidade de álcool e entorpecentes que ingeria e amaldiçoando aquele Deus filho-da-puta que a fazia pagar pelos pecados dos outros.

Nesta época, conheceu Jean Pierre Chevalier, um francês galanteador que prometera levá-la e a seus três filhos para morar na França assim que suas finanças se estabilizassem. Nunca dissera exatamente em que trabalhava, porém. Casaram-se e passaram a morar juntos no trailler que fora de Robert, "só enquanto as finanças de Jean Pierre não se estabilizassem". Mas as finanças nunca se estabilizaram.

Quando Gladys engravidou novamente, após alguns anos de casamento, Jean Pierre achou que o filho não era dele e partiu para cima da esposa com uma garrafa quebrada. Ela e seu filho mais velho atacaram-no com vassouras e pás até deixarem-no desacordado. No dia seguinte, o francês bom-de-bico foi embora para nunca mais voltar. Seu filho que já nasceu sem pai foi chamado de Henri.
 
Após dois anos de mais labuta, bebidas e cigarros, Gladys conheceu Stephen Bishop, seu atual marido, na festa de aniversário de um amigo de seus filhos. Americano mestiço, ele trabalhava como coiote, transportando ilegalmente mexicanos para território estadunidense. Os dois apaixonaram-se perdidamente, e Bishop foi morar em seu trailler apenas alguns meses depois de se encontrarem pela primeira vez.

Gladys e Stephen estão casados há mais de cinco anos, e juntos tiveram os gêmeos Edward e Edgard e a menina Rebecca. Dão-se bem, e vivem felizes, na medida do possível. Álcool, cigarros e entorpecentes estão sempre presentes, é verdade, mas desta vez Gladys pode dizer com certeza que qualquer coisa como o que alguns chamam de amor também está.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O Piano


Ele estava se divertindo, não fosse o fato do absinto estar quase no fim. Ou talvez fosse justamente esse o motivo de estar se divertindo.

Com os olhos já meio embaçados, olhou em volta. À luz pálida dos candelabros negros pôde ver a decoração lúgubre do bar. Carpetes vermelhos puídos, cortinas de veludo cor de vinho, mesas de madeira, uma lareira acesa. Um piano.

Piscou. Um piano? Podia jurar que não havia aquele piano antes.

Balançou a cabeça e olhou para a garrafa quase vazia de absinto. Será que já teria passado da conta?

Dando de ombros sorveu outro grande gole. Enquanto o líquido descia queimando-lhe a garganta, a imagem daqueles cintilantes olhos negros apareceu em sua mente.

Sorriu. O que será que ela havia visto nele? Um cara comum, magrelo, de cabelos claros mal-cortados e olhos castanhos. Comum. Maçantemente comum. E ela, oh, ela era deslumbrante! Enormes cabelos negros e cacheados, pele branca, corpo esguio e olhos – oh, aqueles olhos! – olhos tão pretos que pareciam sugá-lo para dentro deles, como verdadeiros buracos negros.

Vê-la em sua mente fê-lo perguntar-se onde ela estaria. Sim, porque tinha certeza de que ela havia ido até lá com ele. Aliás, fora ela que indicara o lugar e quem estava pagando a conta. Ele não se arriscaria numa garrafa de absinto se o dinheiro saísse de seu próprio bolso.

Sorriu novamente. Sim, estava se divertindo. Nunca uma mulher como aquela o havia convidado para sair, principalmente fazendo questão de pagar a conta. Talvez fosse por isso que não havia reparado no piano. É, talvez fosse isso.

Espreguiçou-se e ergueu os olhos para procurá-la. Ficou espantado ao ver que não havia ninguém no bar a não ser ele. As imagens estavam um pouco difusas, é verdade, mas ainda conseguia enxergar com uma certa nitidez. Não havia mais ninguém.

Achou melhor procurar alguém. Será que o bar havia fechado e haviam se esquecido de lhe avisar? Não, óbvio que alguém teria cobrado a conta e o expulsado de lá a vassouradas quando descobrissem que não tinha um tostão e que sua acompanhante sumira.

Levantou-se com dificuldade. Um ruído ao longe chamou sua atenção. Seriam passos?

Olhou à sua frente e distinguiu sombras esgueirando-se pelos cantos das paredes de pedra até o piano.

Sufocou um grito.

O piano, de novo!

Calma, devia manter a calma. Aquilo era apenas coisa da sua imaginação. Havia bebido demais, era isso. Respirou fundo e, cambaleando, pôs-se a caminhar em direção à saída.

Acordes terrivelmente belos pegaram-no de surpresa a dois passos da porta. Estacou, o coração aos pulos. Virou-se lentamente. Aquilo não era conseqüência da garrafa de absinto seca, não podia ser. A música era linda demais; harmônica, hipnótica. Real.

Um vulto negro debruçava-se sobre as teclas do piano, graciosamente tocando a melodia mais bela que ele já havia escutado. Estava hipnotizado.

Ficou o que lhe pareceram horas ali, parado, apenas ouvindo.

Subitamente, porém, tudo ficou em silêncio. A figura do piano voltou-se lentamente em sua direção, permitindo-lhe então distinguir a face pálida, os cabelos negros cacheados e aqueles olhos escuros que tanto o fascinavam.

Ora, mas é ela!” exclamou. Sorrindo, tentou tropegamente aproximar-se dela. Não chegou a dar dois passos quando ela levantou-se em um pulo e graciosamente parou ao seu lado, com uma velocidade incrível.

Esfregou os olhos. “Como ela fez isso?” Piscou. Estavam muito próximos. “Isso no canto da boca dela é... não... mas é tão vermelho... parece... ora, francamente, homem, você precisa parar de beber! Daqui a pouco vai pensar que ela tem caninos grandes e olhos...” Piscou novamente. “Olhos negros fascinantes...”

A música do piano recomeçara, mas ele não havia percebido. Não conseguia pensar em mais nada, exceto nos olhos muito negros que estavam sorrindo à sua frente.

Ela aproximava-se cada vez mais. Sentia sua respiração quente e pesada chegando cada vez mais perto. Agora poderia até contar quantos cílios havia em cada uma das pálpebras bem delineadas dos olhos dela.

Os lábios encostaram-se.

Ela beijou-o demoradamente na boca; beijou-lhe as bochechas, o pescoço.

Ele mal podia respirar. Sabia o que estava por vir. Estava certo, não era efeito do absinto. Só mais alguns minutos...

Uma sensação tal qual ele nunca havia sentido antes invadiu-lhe o corpo. Uma sensação de êxtase nunca imaginada, deliciosamente dolorida, terrivelmente doce.

Depois não sentiu mais nada. 

...

(Esse conto é de 2005, eu acho - época em que eu lia desesperadamente as Crônicas Vampirescas da Anne Rice XP)

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Um breve conto de fadas


Há muito, muito tempo, em uma distante e longínqua planície localizada além do bosque dos gnomos cor-de-abóbora e a noroeste das montanhas geladas do sul, havia um pequeno vilarejo tranquilo e delicado onde todos os que lá viviam conheciam-se e eram amáveis uns com os outros.

Todos exceto Adamastor, O Terrível.

Adamastor, O Terrível, era um forte e peludo homem de olhos frios e cinzentos e emaranhada barba negra como a noite que possuía especial apreço por amedrontar o resto da população com o objetivo de obter fama, poder e, por que não?, ouro. Muito ouro. Os comerciantes eram, em geral, suas principais vítimas. Gostava de ver o terror nos olhos dos miúdos senhores donos de padarias, açougues, tabernas e mercearias quando aparecia para cobrar sua taxa mensal pela segurança dos estabelecimentos. Gostava do tinir das moedas douradas quando estas eram passadas para suas enormes mãos calejadas. E gostava ainda mais quando os proprietários não possuíam dinheiro suficiente para lhe pagar e ele podia descontar sua raiva cega pela humanidade destruindo tudo o que encontrava pela frente. Alguns já haviam tentado se rebelar, é verdade; mas apenas a visão de seus músculos muito bem cultivados e sua terrível expressão de fúria já funcionava como excelente barreira contra quaisquer reclamações.

Ninguém nunca tivera coragem para enfrentar-lhe no corpo-a-corpo.

Nunca, até aquele fatídico dia.

Era uma fresca e ensolarada manhã de outono e Adamastor havia levantado-se da cama particularmente bem-humorado. Era dia de cobrar a taxa de segurança da taberna do Senhor Rufus Roffinsthëin, o mais assustadiço e enrugado de todos os donos de estabelecimento da pequena vila. E o Senhor Rufus quase nunca possuía a quantia de ouro necessária para o pagamento, o que significava, que beleza!, que muito provavelmente ele iria, em breve, quebrar muitas coisas caras e essenciais para a vida de outra pessoa. Pensar sobre isso fez com que abrisse um largo sorriso enquanto caminhava até a dita taberna.

- Bons dias, meu caro Rufus!! - disse Adamastor, dando um forte pontapé na porta de madeira ao entrar - Como vamos hoje? O movimento tem sido bom?

- Ah! O-o-oi A-da-da-m-m-mas-s-s-stor-r! É, b-b-bem, tá b-b-bom, s-s-sim... - gaguejou o velho Rufus.

- Que bom, que bom! - disse Adamastor, flexionando os dedos - Será que isso significa que este mês você vai me pagar tudo o que deve?

- E-e-eu... A-a-a-da-da-m-m-mas-t-t-tor... eu...

- Ah, mas que pena, heim? - respondeu Adamastor balançando a cabeça - Isso é triste. Você sabe o que eu preciso fazer se você não pagar, não sabe? - continuou, empurrando para o chão todas as garrafas e copos que localizavam-se acima do balcão - Que pena, que pena...

Adamastor começou a derrubar as prateleiras uma por uma. Quando chegou ao balcão que havia próximo a cozinha, porém, parou subitamente. Um rosto fino de mulher observava-o a um canto. Ele não a conhecia. E ela era linda.

- Quem... quem é essa moça? - perguntou Adamastor, embasbacado com a beleza da jovem.

- É-é-é m-m-mi-n-n-nha... - começou Rufus, mas foi interrompido pela própria dona do rosto.

- Sou Lilhium. Lilhium Salvatori. E este lugar que você está colocando abaixo é a taberna do meu tio.

A moça era realmente muito bonita. Possuía compridos cabelos negros e vivíssimos olhos de um verde tão claro quanto a cor das copas das árvores ao amanhecer. Provavelmente era estrangeira, uma vez que Adamastor não a conhecia. Mas se era sobrinha do velho e caquético Rufus...

- Ora, ora, ora - começou Adamastor, desviando os olhos da moça e focalizando Rufus - Meu querido Rufus - continuou, encostando nos ombros do velho - Estou pensando cá com os meus botões, talvez possamos resolver a questão do seu pagamento de alguma outra forma.... – e olhou significativamente para a garota.

- O quê? - disse Lilhium indignada – Você está achando que sou algum tipo de mercadoria de troca?

- Acalme-se, docinho, ainda não estou falando com você - respondeu Adamastor. Mulheres não deveriam ser capazes de falar, já que não o eram de pensar - O que você me diz... - começou a perguntar ao velho Rufus.

- Você me chamou de "docinho"? - interrompeu Lilhium entredentes - Eu vou lhe mostrar quem diabos é um docinho.

- Oh! - sorriu ironicamente Adamastor. "Mulheres", pensou - Como é bravo este docinho! Eu vou só...

- VÁ SE FODERRR!

E o "docinho" desceu o cacete em Adamastor, O Terrível. Em verdade, o peludo homem se valia mais do terror que inspirava do que de sua força em si para conseguir o que queria. Nossa heroína, que aprendera as artes marciais no tempo em que viajara pelo Oriente do mundo, acabou habilmente com toda e qualquer prepotência do malvado vilão.

Depois deste fatídico acontecimento o vilarejo festejou três dias e três noites em honra a Lilhium, a Para O Diabo Com Docinhos, ergueu uma estátua em sua homenagem no centro da praça e todos viveram felizes para sempre.

(Bem, todos exceto Adamastor, O Que Outrora Fora Terrível E Agora Descobrira-se Ser Um Verdadeiro Covarde, que caiu em desgraça devido à surra que levou de "docinho" e foi viver como eremita vegetariano em uma caverna nas profundezas das Montanhas Geladas.)

E fim.
...

XD

domingo, 13 de maio de 2012

Conselho do dia:


Olha bem por onde andas, ó Andarilho Louco, tua jornada pode estar apenas começando.

Não te apegues demais às lembranças cinzas das rupturas carnavalescas da Torre de Marfim; lembra-te que o Mago por ti espera em algum lugar, antes do Fim. 

A Lua Cheia espelha teu rosto; tempera com bom-senso os teus atos. Influenciado pelo Anjo Caído, paixões e diversões não deixarão de ser o teu fraco.

Por fim, é claro, não te esqueças, fica alerta; por trás de qualquer sofrimento há sempre uma porta aberta.

Fica em paz.
Namastê.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Faz parte, tá ligado?


JR : The Tree : Favela do Morro da Providência, Rio de Janeiro (RJ), Agosto 2008.

A gente mora ali, tia. É, ali, no barraco azul. Não, aquele azul calcinha ali. Foi meu tio que pintou. É, atrás da onde os menino tão empinando pipa, do lado do córrego, tá ligada? É, esse córrego nojento aí. Ih, tia, isso tá fedendo desde sempre. E esse cheiro não é nada perto do que fica quando é verãozão, viu? Ah, depois de um tempo cê acostuma. Faz parte.

Água encanada? Vixe, tia, que ideia, mano! Não temos nem o troço de tratar esgoto, nem tiozinho pra vim pegar o lixo, nem nada disso, não. Os da gravata até diz que vai vim aqui pra botar umas parada, mas só lembra que nós existe quando tá perto de ter que votar, tá ligado? Aí é aquele auê todo, saca, com os político tudo subindo aqui cheio de pompa pra apertar as mão da galera, pegar as criancinha no colo, entregar as cesta básica e dar aquelas camiseta com foto que as tia usa pra limpar as casa das madame, tá ligado? Eles fica dizendo que é pra nós votar neles que nós vai  viver melhor e aquelas putaria toda. Mas nunca melhora, né? Eles ganha e faz de conta que nós não existe de novo, que nem todo mundo.

Aqui é assim desde sempre, tia. Desse jeito, como se ninguém visse que nós existe, saca? Parece até que os cara importante que anda do outro lado da rua todo arrumado e cheio de fita não consegue ver nós, não. Eles finge que não vê, né? Eu, se fosse eles, podendo vê só coisa linda feito os gringo de Ferrari, as novinha de biquíni e o Copacabana Palace não ia querer ver umas coisa como essa aqui, não. Quem é que ia querer vê gente suja e fodida como nós? Só você, mesmo, tia. Mas você pode ir embora quando quiser, né, tia, voltar pra sua casa bacana com elevador e ar-condicionado. Nós não.

Ah, eu vou pra escola sim, né, tia? Minha mãe diz que tem que ir pra não cair no papo dos bandido, porque o que mais tem aqui é traficante querendo os moleque de menor pra fazer rolê pra eles, saca? Aliás, você me lembra ela, tia. A minha mãe. O cabelo preso parece. E ela também diz pra mim tomar cuidado, manja, porque os mano aqui pensa que é vida fácil esses rolê de paranga, que é só levar uns corre e ficar de boa com a fita, mas se você não fica esperto acaba indo trocar uma ideia com o diabo antes dos vinte, tá ligado? Vira e mexe tem neguinho tomando tiro por aí. Uma pá de colega meu já embalou com pipoco de trafica ou de coxinha, tá ligada? Mas é que é foda tentar outro rolê, saca, tia, então você se acostuma a ver os maluco estirado na rua ou com uns furo de trabuco na mão e pensa que da próxima o presunto pode ser você. Faz parte, né, tia, a gente vive ou morre do jeito que dá.

Saca, tia, na real, na real mesmo, o que eu queria era poder fazer as coisa que os filhinho de bacana faz, tá ligada? Nem só ter as coisas que os boyzinho tem, manja, isso seria muito louco, também, poder jogar uns vídeo-game irado, né, mas eu queria era poder viver, mesmo, saca, não assim do jeito que nós vive aqui. Isso aqui não é vida não, tia. Eu queria era poder ficar de boa na lagoa, só indo pra escola, pra aula de inglês, de futebol, de qualquer coisa, saca, e aprender umas parada louca aí numa hora, tá ligada, tipo, que eu até curto uns role das história aí, dos português, dos nego que escrevia uns livro doido, manja, e poder conhecer uns lugar legal, e comer pizza de noite, tá ligada?

Deve ser muito louco poder pensar no futuro de boa, né, sem ter que ficar esperto pra ver se você vai tá vivo amanhã. Mas a gente tem que fazer os corre pra sobreviver, saca, senão fica sem nada. E as pessoa ainda joga tudo a culpa na gente, manja, diz que nós é tudo vagabundo, que queremos vida fácil, que somos uns trombadinha de bosta. Mas é difícil pra caralho, saca, tia. Quem diz que todo mundo pode mudar de vida com certeza não nasceu nas quebrada. Ou, se nasceu, deu sorte de jogar bem uma pelada e ser contratado por um time foda, que na real é a única coisa que dá pra nós fazer pra sair daqui.

Eu não quero me enrolar mais pra frente, saca, tia, virar bandido e morrer antes dos trinta. Acabei de fazer treze anos, manja? Mas é foda, tá ligado?, eu sei que quando eu for tentar um trampo depois, em qualquer lugar os cara já vai me olhar torto porque eu sou preto e moro no morro. Tipo que nem foi com o meu pai.

Se liga, meu pai morreu numa fita com os coxinha quando eu não tinha nem três anos, ele tava fodido de dívida, não conseguia trampo nem fodendo já tinha mó tempão, aí entrou numas paradas aí pra ver se a gente melhorava os rolê e nem isso adiantou. Terminou com um furo bem no meio da testa. Eu não quero isso pra mim, não, saca, tia. Não tenho sorte, que nem meu pai, nuns pico louco desses eu ia tá varado no primeiro pipoco, igualzinho a ele.

É foda, manja, mas vô vê se consigo sair daqui, fazer uma coisa legal com a minha vida, sei lá. Dizem aí que estudar ajuda, né? Vamos ver. Quem sabe as coisa muda mais pra frente. Quem sabe o olheiro do Flamengo me vê jogando bola, já pensou? Ah, ia ser muito louco. Mas o negócio é ter fé, tia. E vamo que vamo. Faz parte, tá ligado?



(No mês seguinte a mãe do garoto foi executada por uma facção traficante porque seu namorado não havia cumprido um trato. O garoto então entrou para a facção rival procurando vingança e morreu poucos dias depois em um confronto armado com a polícia.)


...

“Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel"

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Anarquia...?


Sociedade.
Cérebros em conserva manipulados por uma caixinha de imagens.

Faça assim.
Seja assim.
Pense assim.

É, como todo o mundo!

Atenção!

Agora é a hora de todos pensarem contra.

Contra o quê, não importa,
Apenas pensem contra, eu estou mandando.

Diga que é contra, é o que todos estão fazendo!

Aja como se fosse contra,
Aja assim:

Quebre vitrines,
Queime bandeiras,
Grite ‘Fora o Governo’.

Não, você não sabe o que é governo.

Apenas grite.

Idolatre velhos revolucionários.

Não, você também não sabe quem são.

Apenas decore suas palavras mais famosas e use camisetas com suas fotos.

Coloque correntes e blusas com símbolos que você nem sabe o que significam.

Vista-se de um jeito diferente,
É o que todos estão fazendo.

Diga que não quer ser manipulado,
É isso o que eu quero que você diga.

Isso, isso, bom garoto.
Agora você vai ganhar um doce.

...



(São Pedro, dezembro de 2005)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Eu quero...

Eu quero alguma coisa doce feito brigadeiro caseiro pra se comer de colher.
Alguma coisa que tenha cheiro de café fresquinho servido na hora e tato de plástico-bolha de televisão nova.
Eu quero uma coisa que seja coisa bonita como o por-do-sol em Águas, aconchegante como um chá quente no inverno, deslumbrante como um céu estrelado e grande e pequena como o próprio Universo.

...

Depois da liquidação de verão as prateleiras do Mercado das Almas estão todas vazias.

terça-feira, 8 de maio de 2012

O grande amor da vida de Gustavo

Gustavo olhava distraidamente para os prédios que passavam velozes pela janela do ônibus. Mais algumas paradas e finalmente chegaria em casa, abriria uma lata de cerveja e assistiria ao jogo do Timão.

“Oh, céus, que vidinha medíocre que tinha!” pensava, enquanto o veículo parava outra vez. Precisava urgentemente de alguma coisa que fizesse sua vida ficar mais interessante, ou logo se tornaria um velho solteirão barrigudo e alcoólatra.

— Com licença! — disse uma voz feminina sentando-se ao seu lado.

Quando Gustavo virou-se desinteressado para a dona da voz, seu coração deu um pulo: Aquela era a mulher com quem iria se casar! Nunca a havia visto antes, mas soube no mesmo instante que tinham sido feitos um para o outro. Aqueles cabelos castanhos tão brilhantes, os olhos escuros perfeitos, o nariz, a boca, tudo nela era lindo! Já podia imaginá-la vestida de noiva entrando na igreja, a lua-de-mel fantástica no Havaí, o apartamento em que morava redecorado por ela, os dois filhos que teriam, Roberta e Fernando, os netos brincando na sala, eles envelhecendo juntos numa casinha do interior...

O ônibus deu um solavanco, tirando Gustavo de seus devaneios. Para que todas aquelas fantasias se realizassem ele precisava tomar uma atitude! Ela estava ali, ao seu lado, a apenas alguns centímetros dele! Precisava ao menos saber o nome dela...

— Hã... — começou ele. E parou assim que ela voltou-lhe os olhos. Estava petrificado por aquele olhar tão incisivo, os cílios tão bem desenhados, as pequenas sardas sorrindo nas bochechas.

— Pois não? — disse a moça, e sua voz pareceu-lhe o canto dos anjos.

— Hmm grr.. b... sss aah?

— Oi? Desculpa, não entendi.


— Ah... é... que horas são, por favor?

— Seis e meia.

— Obrigado...

Idiota! Ela era a mulher da vida dele e ele não conseguia dizer nem um mísero “que horas são”?!

Virou-se para a janela. As luzes da cidade pareciam debochar de sua timidez. Que absurdo, ele, Gustavo, o ‘destruidor de corações’ que sempre se gabara de saber como ninguém conquistar qualquer mulher e que tinha a melhor lábia do mundo não conseguia sequer olhar nos olhos daquela moça! Ele devia estar doente, só podia ser. Mas aqueles olhos...

Virou-se para ela de novo. O que iria dizer-lhe? Deveria ser sincero, é claro. Ah, pois sim, iria dizer-lhe “oi, eu sou o Gustavo, acabei de descobrir que você é a mulher da minha vida, quer casar comigo?”! Sim, obviamente deveria dizer isso. Seria muito charmoso, só que ao contrário. Ela provavelmente acharia que ele era louco e, com noventa por cento de chances, simplesmente o ignoraria enfatizando seu desprezo. Óbvio que não poderia ser tão direto assim, seria melhor se começasse a falar de amenidades. Perguntar sobre o tempo, então? Francamente, homem, depois do “que horas são?” não conseguia pensar em nada melhor?

Ele estava começando a se desesperar. Tinha que falar com ela antes de descer daquele ônibus, e isso seria daqui a três paradas! Era uma questão de vida ou morte!

Ah! E se comentasse alguma coisa sobre sua roupa? Não, correria o risco dela achar que ela era gay. Futebol, talvez? Que tal convidá-la para ver o jogo do Corinthians com ele? Ah, mas e se ela fosse daquelas mulheres que odeiam futebol? Ou, pior, e se fosse palmeirense? Bem, poderia comentar sobre política, então. Mas e se ela fosse formada em ciências sociais e começasse a dissertar sobre o Manifesto Comunista?

Olhou-a mais uma vez; ela estava observando-o também. E sorria! Que dentes maravilhosos ela tinha! Queria dizer-lhe isso, dizer-lhe que era linda, que haviam sido feitos um para o outro, que precisavam ficar juntos, casar, ter filhos, cachorro, periquito, papagaio, um bangalô à beira mar e um jardim com orquídeas para regar; mas não conseguia achar as palavras. E se ela se assustasse?

Ela continuava sorrindo. Sim, e finalmente uma onda de coragem o invadiu.

— Hã... — disse 
—  Você é comunista?

Você é comunista? Que diabo de pergunta é essa, Gustavo? Você deveria abdicar da vida e ir viver feito um ermitão em um caverna de gelo no alto do Himalaia.

— Comunista? — ela riu. E que risada deliciosa que ela tinha! — Você é engraçado.

— Sou?

— É. Bem, esta é a minha parada — ela disse, um tanto desapontada - ou seria impressão sua? -, levantando-se e dando o sinal para o ônibus parar — Até logo.

Não! Ela iria embora assim, logo quando tivera coragem de iniciar uma conversa? Não foi um bom começo, é verdade, mas a sorte estava do seu lado agora. Ela o achara engraçado! Não podia simplesmente deixar que ela se fosse assim, sem mais nem menos. Precisava ao menos saber o seu nome!

— Ei, moça! — Gustavo gritou enquanto o ônibus parava e ela se preparava para descer — Qual o seu nome?

Ela virou-se, ligeiramente ruborizada, mas ainda sorrindo.

— Camila... — disse, e saltou.

Ele debruçou-se na janela enquanto o veículo recomeçava a se movimentar, e gritou:

— Meu nome é Gustavo! E nós vamos nos casar!

Mas Gustavo não se casou com Camila. Nunca mais a encontrou. Fez aquele caminho de ônibus às seis e meia da tarde outras oito quarta-feiras seguidas, até que finalmente desistiu. Casou-se com outra mulher, teve filhos, separou-se, casou-se de novo, teve outros filhos e viveu uma vida longa e desinteressante. Nunca, porém, deixou de pensar naquela que ele tinha certeza de que seria o grande amor da sua vida – e que, justamente por não ter sido, durante toda sua vida assim o foi.



...

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O Santuário - Parte III

(Se acabou de cair de pára-quedas, leia aqui a parte um e aqui a parte dois)



O som dos tambores recomeçara no momento em que Rosângela e Gregory colocaram os pés para fora da cabana. Uma cruz vermelha havia sido pintada na porta de madeira. Os dois correram desesperadamente em direção ao bosque próximo, pensando apenas em como poderiam sobreviver àquela monstruosidade surreal. Depois do que lhes pareceu horas de correria às cegas, finalmente o bumbo dos tambores distanciou-se até cessar completamente. Eles estavam completamente perdidos, com apenas a luz da lua a iluminar fracamente as árvores a sua volta.

— E agora?! — gritou Gregory levando as mãos à cabeça e encostando-se a uma árvore. Estava prestes a desmaiar — Por quê você tinha que ter entrado naquela maldita caverna, Rosi?! Por quê?! Agora nós estamos completamente fodidos, presos nesse pesadelo de filme de terror até que alguma coisa monstruosa venha atrás de nós e acabe com a história de uma vez!!

— Ah, cala a boca! Foi você que fez isso acontecer, tinha que ser estúpido o suficiente pra se cortar naquelas lanças? — respondeu Rosângela aos berros.

Os dois ficaram em silêncio.

— Porra, Greg — disse Rosângela abraçando o marido — Não vamos brigar. A gente já tá fodido, só vamos piorar as coisas. Vem, vamos tentar sair daqui.

Caminharam a esmo por um bom tempo, embrenhando-se cada vez mais na mata densa. Silvos de animais noturnos misturavam-se com o resfolegar do vento nas copas das árvores. Olhos brilhantes os observavam do escuro. Então, subitamente, um uivo lancinante pôde ser ouvido e um intenso brilho avermelhado surgiu ao longe na floresta, aumentando de tamanho rapidamente e aproximando-se cada vez mais.

— Rosi... — disse Gregory agarrando o braço da esposa.

O fogo espalhava-se de forma veloz, tomando tudo o que encontrava pela frente. Rosângela e Gregory correram na direção contrária a toda velocidade, acompanhando os muitos animais selvagens que também fugiam do inferno flamejante, tropeçando inúmeras vezes em ramos espinhentos ou buracos de coelhos.

Depois de algumas horas em fuga alucinada, o fogo finalmente ficara para trás, e os dois haviam perdido completamente o sentido de direção. Ainda caminhavam a esmo quando as primeiras luzes da aurora ficaram visíveis por entre as folhagens.

Era dia claro quando chegaram a uma estreita trilha de terra. Estavam cansados, esfomeados, sedentos e esfarrapados. Mas estavam vivos, e era tudo o que importava.

— Acho que essa trilha é a que usamos para ir da aldeia até aquela caverna — disse Rosângela — Será que é seguro voltarmos para a aldeia? — continuou com um arrepio.

— Nós não temos muita escolha, temos?

***

Ao chegarem nas proximidades da aldeia o Sol já estava alto. A luz reconfortante do Sol fazia com que todos os horrendos acontecimentos da noite anterior não passassem de um sonho. No momento em que entraram na aldeia, porém, todas as suas esperanças se desfizeram em pó.

O cenário era desolador. O vilarejo estava absolutamente deserto. As paredes das cabanas haviam sido marcadas com símbolos peculiares e enormes cruzes vermelhas brilhavam, pintadas com sangue, nas portas arrancadas.

— Rosi... — começou Gregory, pálido, apontando para um lado.

Uma fileira com centenas de lanças reluzentes estava disposta em forma de espiral, com cabeças humanas sanguinolentas espetadas morbidamente em suas pontas. Os olhos eram buracos vermelhos e pustulentos, e as orelhas e narizes haviam sido arrancados, contribuindo para a aparência grotesca da cena.

Os conhecidos tambores começaram a soar.

— Nós vamos morrer... — balbuciou Gregory.

— Não, não vamos — disse Rosângela — Eu me recuso a morrer dessa forma. ME RECUSO, ESTÃO ME OUVINDO, ESPÍRITOS AGOURENTOS? — gritou para o céu e abriu os braços — VOCÊS NÃO EXISTEM, SEUS MALDITOS FILHOS DA PUTA! EU NÃO ACREDITO EM VOCÊS, VOCÊS NÃO PODEM FAZER NADA COMIGO! EU NÃO VOU MORRER ASSIM! NÃO VOU! NÃO VOU!

E os tambores emudeceram.

— Não vou... — Rosângela parou — Greg. Os tambores...

— Rosi, o que você fez?

— Eu... não...

— Seja lá o que for, é a nossa deixa pra sairmos daqui! O carro do professor deve estar estacionado na beira da estrada, se conseguirmos encontrar a chave em algum lugar...

Encontraram a chave milagrosamente ao lado dos escombros que outrora foram a cabana de Richard Johnson. Correram até o carro que, por outro milagre, estava incrivelmente intacto.

— VAI! — gritou Rosângela pisando no acelerador, mas o carro insistia em não funcionar — VAMOS!!

O som dos tambores recomeçara. Parecia estar se aproximando.

Finalmente o carro pegou. Saíram cantando pneu, distanciando-se da aldeia e do som dos tambores, até finalmente chegarem ao aeroporto.

****

— Ah! Nem acredito que estamos em casa — disse Gregory, dois dias depois, espreguiçando-se em seu sofá — E vivos!

— Nem me fale — respondeu Rosângela — Talvez no fim nós estivéssemos apenas sonhando.

— Se eu sonhasse com uma coisa daquelas nunca mais perdoaria o meu subconsciente.

— Vou buscar o jornal — disse a doutora, abrindo a porta — Greg... — continuou, empalidecendo.

Uma cruz vermelha havia sido pintada com sangue em sua porta. E o som dos tambores recomeçava...

...

FIM.

domingo, 6 de maio de 2012

O Santuário - Parte II

(Se não leu a parte I, clique aqui)


— Ah, essa não! Cadê a lanterna?

Com cuidado redobrado, desceram os últimos degraus. Quando seus pés os avisaram de que haviam chegado ao final da escadaria, puseram-se a procurar a lanterna, apalpando o escuro.

— Ugh! Que fedor! — disse Gregory tampando o nariz e tateando o vazio em busca da lanterna — Ai! Acho que me cortei!
— Achei! — Disse Rosângela ligando a lanterna.
Mas seria melhor tê-la deixado apagada.

O aposento era úmido, com correntes enerrujadas pendendo do teto e ratos e besouros em decomposição acarpetando todo o chão. Lanças e espetos cujas pontas atravessavam restos de cabeças humanas acomodavam-se a um canto, enquanto no outro centenas de esqueletos e corpos mutilados jaziam de forma sombria. Nas paredes, inscrições de símbolos estranhos pareciam ter sido pintadas com sangue, e do lado oposto ao da escadaria, presa à pedra por ganchos de ferro, uma enorme coroa de ouro e diamantes cintilava agourentamente sob a luz da lanterna.
— Rosi... — sibilou Gregory — Acho que me cortei naquelas lanças... estou sangrando!

— Vamos embora daqui...

Subiam lentamente os primeiros degraus da escadaria quando, então, uma gargalhada demoníaca ecoou pelas paredes de pedra.

Rosângela e Gregory estremeceram, sentindo as entranhas congelarem e o coração acelerar como se quisesse abrir um buraco no peito e fugir para o mais longe possível dali. E então puseram-se a correr. Correram como se um diabólico exército de criaturas infernais estivesse marchando atrás deles e suas vidas dependessem da velocidade dos seus pés – porque, naquele momento, talvez elas de fato dependessem.

Assim que chegaram ao topo da escada e saíram para o salão com os pilares, a parede se fechou novamente com um estalo, e os dois continuaram correndo desesperadamente sem olhar para trás por sequer um instante. Voltaram para a cabana sem nem ao menos esperar pelo resto da expedição.

— Caramba! — exclamou Gregory arfando quando chegaram ao alojamento — O que diabos era aquilo?!

— Não sei — disse Rosângela com uma expressão fixa — Acho que era uma tumba, ou uma masmorra...

— E o que foi aquela risada?! — falou Gregory apertando as mãos.

— Deve ter sido coisa da nossa cabeça, Greg. Ficamos perturbados pra burro quando vimos aquelas correntes e aqueles — ela estremeceu — corpos. Deve ter sido isso. Tem que ter sido isso. Não pode ser outra coisa. Porque, né?, essas coisas não existem. Não podem existir. Não... — ela balançou a cabeça e olhou para ele — Ai, Greg, você tem que limpar esse machucado!

— Ah, é mesmo! Com tanta adrenalina tinha até parado de doer. Devo ter me cortado em alguma daquelas lanças novas e limpinhas que estavam lá. É melhor eu lavar isso logo antes que infeccione, dê uma gangrena e eu morra de tétano.

***

À noite, Rosângela e Gregory jantavam um ensopado qualquer em sua cabana.
Agora, sério, Rosi — começou Greg — Aquilo que aconteceu hoje mais cedo não foi produto das nossas mentes perturbadas. Meu cérebro nunca seria capaz de criar uma gargalhada tão assustadora quanto aquela.

— Ah, Greg, de novo isso? Não quero mais pensar sobre esse assunto. O cheiro da decomposição deve ter feito a gente alucinar, sei lá. Ou vai dizer que você prefere acreditar que eram zumbis hindus doidos para comer nossos cérebros?

— E se fossem?

— Você anda assistindo muito Walking Dead. Em todo o caso, zumbis não gargalham.
Neste momento, ouviram três fortes batidas na porta de madeira do bangalô.

— Quem será a essa hora? — perguntou Gregory, tenso.

— Relaxa, Greg, zumbis não batem na porta antes de entrar — riu Rosângela — Quem é? — perguntou mais alto.

— É o professor Richard Johnson — disse uma voz rouca do lado de fora.

— Ah, o que esse cara de fuínha quer agora? — disse Gregory em voz baixa.

O professor era o chefe da expedição. Um senhor baixo, magro, com uma cara comprida e um nariz pontudo. Muito míope e muito entediante, porém muito inteligente também. E já havia estado naquela região da Índia aprofundando suas pesquisas pelo menos umas oito vezes antes daquela.

— Boa noite — disse ele quando entrou — Como está o ensopado?

— Ah, está gostoso. As cozinheiras daqui são muito boas. O senhor gosaria de jantar?

— Não, obrigado. Tenho uma pergunta a fazer. Vejam, eu não queria parecer grosseiro, por isto perguntei sobre o ensopado. Mas a pergunta que quero fazer não é essa, sobre o ensopado. Dizer banalidades ajuda a quebrar o gelo, é o que dizem por aí. Não sou muito bom com essas coisas. Fiz cursos, até. Mas não sei lidar com pessoas, especialmente vivas.

— Hum, certo, professor. O senhor gostaria de saber...? — cortou Rosângela.

— Sim. Digam-me: O que aconteceu na gruta hoje de manhã para que vocês decidissem voltar sem a expedição?

Gregory e Rosângela entreolharam-se.

— Bem, o Greg se machucou — começou Rosângela — E achamos melhor vir tratar o ferimento dele aqui.

— Deixe-me ver este ferimento — disse o professor.

Gregory retirou as bandagens que envolviam sua mão e mostrou ao professor seu machucado recém-adquirido.

— Este ferimento se parece com os encontrados nos vestígios mortais de um antigo grupo humano que costumava viver nesta região. Estranho, estas lanças utilizadas por eles não existem mais hoje em dia. Ou existem? — Richard Johnson lançou-lhes um olhar penetrante por trás dos grossos óculos de aros pretos — Essas lanças são envenenadas. Você está morrendo, Gregory.
— O QUÊ? NÃO! COMO...? — gritou Gregory.

— O que você está dizendo, professor? — perguntou Rosângela arregalando os olhos e abraçando seu marido — Não, veja, nós encontramos uma sala isolada na gruta, hoje, que tinha essas lanças, uma coroa e esqueletos e...

— Ah, sim — disse o professor — Eu havia imaginado. Acalme-se, Gregory, você não vai morrer, pelo menos não envenenado pela lança. Só disse isto porque precisava que me contassem exatamente o que aconteceu.

— SEU VELHO FILHO DA PUTA! — gritou Gregory dando um soco na cara de Richard.

— De qualquer forma — disse o professor, limpando o sangue da boca — vamos todos morrer.

— Como assim? — perguntou Rosângela.

— Vocês abriram a Tumba Sagrada, onde os antigos povos hindus aprisionavam os maus espíritos e os de mau coração. Vocês... — nesse momento, parou. Sons de tambores ecoavam nas paredes, cada vez mais altos.

— Que porra é essa? — berrou Gregory dirigindo-se à janela.

— São os antigos tambores Hindus usados em rituais de sacrifício — respondeu Richard começando a balançar-se freneticamente para frente e para trás. Linhas azuladas em forma de círculos começaram a despontar em sua pele ao redor dos olhos, alongando-se por todo o rosto.

— O que... o que é isso no seu rosto, professor?! — perguntou Rosângela em um sussuro.

— Meu rosto... — começou Richard tocando os olhos. As marcas agora enrolavam seu pescoço, colo e braços. Os tambores ficavam cada vez mais próximos, cada vez mais altos, cada vez mais desesperadores. — É o começo do fim.

— Vou ver que merd... — disse Gregory abrindo a porta. Mas subitamente o som dos tambores cessou, mergulhando a aldeia num silêncio ensurdecedor — Isso é pior que os tambores... — sussurrou.

— É... em breve, agora... — balbuciou o professor, tremendo nervosamente, apertando os braços contra si.

— O que aconteceu? — perguntou Gregory — O que ESTÁ acontecendo?

— Vocês — o professor levantou-se de repente — VOCÊS! VOCÊS LIBERTARAM OS ESPÍRITOS AGOURENTOS DE OUTRORA!

— O quê?
— DEPOIS DE MILHARES DE ANOS ENCLAUSURADOS, ELES VOLTARAM PARA SE VINGAR! — Richard virou-se bruscamente para Gregory, agarrando-lhe o braço — E A CULPA É SUA!

— Minha?!

— O SEU SANGUE! O SEU SANGUE DEU-LHES A VIDA NOVAMENTE!

— Professor, por favor, acal...

— NÃO! O SANGUE DELE DESPERTOU OS ESPÍRITOS AGOURENTOS DE OUTRORA! ELES ESTÃO VOLTANDO PARA ME PEGAR, PARA PEGAR TODA A HUMANIDADE! VEJAM AS MARCAS!

— Professor, acalme-se, eu...

— ACALMAR-ME? FUI EU QUEM APRISIONOU O ÚLTIMO SER INFERNAL, O MAIS PODEROSO DE TODOS, EXATAMENTE CINQUENTA ANOS ATRÁS! — o professor caiu no chão, retorcendo-se de forma inumana — AGORA ESSE IMBECIL OS SOLTOU, E ELE VIRÁ ATRÁS DE MIM! E DE VOCÊS! E DE TODA A HUMANIDADE!

Os tambores recomeçaram. Richard gemia e contorcia-se caído no chão de terra. Gregory, histérico, gritava palavrões atropelados e esmurrava uma parede. Rosângela sentava-se na cadeira e olhava fixamente para o professor, em choque.

— Greg... — começou a doutora — Greg, acho melhor..

O professor caído começara a transformar-se em qualquer coisa absolutamente inexplicável. Seu cabelo grisalho caía em tufos no chão enquanto pequenas elevações cônicas surgiam em seu crânio. Sua pele adquirira uma coloração alaranjada e os círculos azulados aprofundavam-se como sulcos negros na carne. Bolhas cinzentas pipocavam em suas costas.

— VAMOS SAIR DAQUI! — berrou Gregory puxando a esposa pelo braço e batendo a porta da cabana atrás de si.


(Continua...)