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terça-feira, 20 de junho de 2017

Tudo bem?


Acordava todo dia no mesmo horário. Levantava da cama, escoava os dentes, tomava o café, varria a calçada. Bom dia, como vai, tudo bem. Armado de um sorriso engessado convencia a todos  - e a si mesmo - de que estava tudo bem.

Vivia todos os dias como se fosse o mesmo. Sabia muito sobre teorias. Prática para que? Fugia das experiências como a areia foge de uma ampulheta quebrada - tinha medo de descobrir que não estava tudo bem.

Morreu.

Estava mesmo tudo bem?

terça-feira, 16 de abril de 2013

Apatia


Acordou aquele dia como sempre acordava, bebeu seu café preto como sempre bebia, comeu duas torradas como sempre comia.

Entristeceu-se por nada, como sempre acontecia.

Vestiu-se pro trabalho como sempre se vestia, caminhou pela rua como sempre caminhava, conversou com seu vizinho como sempre conversava.

Imaginou-se em outro mundo, como sempre imaginava.

Chegou ao escritório como sempre chegava, sorriu para os colegas como sempre sorria, fez o seu serviço como sempre fazia.

Sentiu-se miserável, como sempre se sentia.

Saiu às seis da tarde como sempre saía, jantou no Japonês como sempre jantava, chegou em casa às oito como sempre chegava.

Pensou em se matar, como sempre pensava.

Tomou os seus remédios como sempre tomava, bebeu goles de uísque como sempre bebia, distraiu-se com a tevê como sempre se distraía.

Morreu aquela noite, como sempre morria.

(E, nos dias seguintes, tudo se repetia.)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Amor



As crianças brincavam no quintal. A menina de maria-chiquinha nos cabelos corria alegremente pela grama, arrastando pelo pulso o menino sorridente da blusa manchada de terra.

Os dois se divertiam como apenas quem consegue encontrar todas as verdades do Universo em um grande pote de sorvete de chocolate consegue se divertir.

Pararam um momento para descansar debaixo de uma árvore, rindo.

- Eu gosto de você, Marcela - disse o menino da blusa manchada de terra para a menina de maria-chiquinha  nos cabelos - Quando eu olho pra você, fico com uma sensação engraçada no peito, como se uma nuvem de floquinhos doces resolvesse envolver meu corpo com pequenas doses brilhantes de alegria de arco-íris.

- Eu também gosto de você, Luís - respondeu a menina de maria-chiquinha nos cabelos para o menino da blusa manchada de terra - Você não se importa em sujar sua blusa de terra, exatamente como eu.

Então abraçaram-se e sorriram e viveram.
(E nunca mais tocaram neste assunto novamente.)

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segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Reflexões de uma lagartixa


A lagartixa permanecia estática no alto da parede, observando com parco interesse os movimentos randômicos daqueles enormes seres desengonçados que perambulavam pelo recinto.

Que diabos de bichos seriam aqueles?, pensava ela com seus botões. Estavam sempre por aqui, por ali, por qualquer lugar para onde se dignasse a voltar seu olhar. Sempre correndo, apressados, mexendo em papéis coloridos, gritando palavras ininteligíveis uns para os outros.

Qual seria o objetivo da vida daquelas criaturas? Elas apareciam, faziam, aconteciam e desapareciam. E não serviam para absolutamente nada. As lagartixas, pelo menos, viviam a vida da forma como foi feita para ser vivida, ela pensava. Comiam insetos e eram comidas por cobras. E isso bastava.

Aqueles seres, por sua vez, pareciam nunca estar satisfeitos com o que quer que fosse. E tudo parecia girar em torno dos pedaços coloridos de papel que passavam das mãos de uns para as de outros.

Talvez os papéis coloridos equivalessem a bonitas e gordas baratas cascudas, pensou a lagartixa.

Então uma bonita e gorda barata cascuda apareceu, com uma aparência muito mais apetitosa do que a dos pedaços coloridos de papel das criaturas grandes e desengonçadas, e a lagartixa parou de pensar: precisava, mais uma vez, cumprir o seu papel belo no quadro da cadeia alimentar.

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sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Uma terça-feira num bar


Na mesa do bar, em meio a garrafas vazias e cigarros apagados, a moça de cabelos claros fitava o vazio.

A névoa ambiente embaçava as figuras já meio desfiguradas que pulsavam à sua volta: sorrisos sem rosto, vozes sem boca, mãos sem corpo.

Pensamentos sem mente.

Piscando os olhos negros muito maquilados, a moça bebeu mais um gole de cerveja.

Já havia passado da conta, ela sabia; mas pequenas porções de melancolia etílica ajudavam-na a persistir.

A sentir.

Sentira-se entorpecida a vida toda, de qualquer forma.

Sóbria, o desequilíbrio e a contradição eram constantes, incontroláveis.

Entorpecer-se com substâncias manipuladas ao menos fazia com que recuperasse o controle da situação:

Sabia exatamente quantos copos precisava para alcançar determinado ponto de insanidade  no cotidiano, porém, não contava com qualquer tipo de medição.

Era por isso que estava onde estava.

No bar.

Em plena terça-feira.

Custava-lhe, no dia-a-dia, adequar-se ao sistema da vida que lhe fora imposta sem que ninguém lhe perguntasse se estava de acordo ou não.

Era-lhe penoso tentar se enquadrar ao que o mundo queria que ela fosse quando nem ela mesma era capaz de saber quem queria ser.

Passou a mão repleta de anéis nos cabelos e permitiu-se acender um último cigarro.

Acendeu um último suspiro.

– No fim, tanto faz – disse ela, entre anéis de fumaça – Algumas vezes, voar é só uma questão de errar o chão.


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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Não Tenho Tempo!


Nascimento prematuro.
Escola, inglês, informática.
Casa.
Jantar, estudar, dormir.
Vamos sair? - Não tenho tempo!
Preciso dar duro para ser um adulto bem sucedido.

Juventude.
Faculdade, livros, estágios.
Casa.
Jantar, estudar, dormir.
Vamos sair? - Não tenho tempo!
Preciso dar duro para arranjar um bom emprego.

Vida adulta.
Trabalho, carreira, escritórios.
Casa.
Jantar, trabalhar, dormir.
Vamos sair? - Não tenho tempo!
Preciso dar duro para ganhar cada vez mais dinheiro.

Café, olheiras, papéis.
Contas, contas, contas.
Trânsito, estresse, irritação.
Dinheiro, dinheiro, dinheiro.

Família? - Não tenho tempo!
Amigos? - Não tenho tempo!
Namorada? - Não tenho tempo!

Estou atrasado, está tarde, preciso correr!

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Velhice.
Solidão.
Morte.

Não deu tempo.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A Menina Sem Rosto


Acordou um dia e não sabia mais quem era ou o quê diabos estava fazendo ali. Sua máscara havia caído e ela não possuía mais um rosto.

Olhou-se no espelho e não se reconheceu: quem seria aquela essência quase em branco que a observava estranhamente com um sorriso irônico nos olhos castanhos?

"Eu" pensou, respirando profundamente. "Finalmente eu."

Redescobrindo a si mesma em cada passo, pegou a máscara que havia-se descolado e guardou-a em uma caixa de sapatos.

Saiu à rua em seguida, ainda sem rosto, ainda sem encosto, ainda sem direção.
(Saiu à rua da forma como sempre quis.)

Os seres mascarados enfileirados nos passeios urbanos não entenderam, apontaram-na, fizeram-lhe caretas, disseram-lhe impropérios.

Ela nem se importou.

No meio da massa dissimulada, era a única que podia ter quantos rostos quisesse.

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