terça-feira, 25 de dezembro de 2012

"Crise de Natal"


No meio da sala, sentada de pernas cruzadas e iluminada pela inconstante luz colorida dos pisca-piscas, a moça fitava inexpressiva a árvore de Natal. Segurava nas mãos finas de unhas bem feitas uma garrafa de champanhe pela metade e um cigarro de filtro branco apagado. Sentia-se entorpecida. 

Era Natal, mais uma vez. E, mais uma vez, passaria esta data sozinha.

Completamente sozinha.

Não sabia por quê diabos sentia-se tão mal. Ela mesma sempre dissera a quem se propusesse a ouvir que o Natal não passava de mais uma data como outra qualquer, especial apenas para as lojas de brinquedos e comércios em geral que faturavam milhões com a propaganda consumista do tal do Papai Noel.

Mas todo ano era a mesma coisa. Dezembro se aproximava e, com ele, uma nostalgia gigantesca que fazia inclusive com que ela decorasse seu apartamento com a temática natalina.

Talvez esse sentimento fosse culpa da saudade que sentia dos Natais da sua infância, pensou ela, quando tudo era mais colorido e tinha gosto de caramelos açucarados.

Lembrava-se da confusão da família reunida, das conversas animadas, dos primos correndo para lá e para cá no quintal enorme da casa da avó.

Mas a avó morrera, os primos cresceram, os desentendimentos vieram e ela se viu passando as festas, ano após ano, cada vez mais sozinha.

Cada vez mais sozinha.

E seu temperamento também não ajudava, de fato. Precisava, mesmo, ser tão rude com qualquer um que ousasse se aproximar? Passara por bons bocados quando mais nova, de fato, e erigiu muralhas de sarcasmo e arrogância para separá-la da dor. Mas agora via-se presa atrás dessa fortaleza costumeira e sequer tinha ânimo para tentar dela se desvencilhar.

Suspirando, bebeu outro gole de champanhe.
(Era sua terceira garrafa.)

“Esse ano será diferente”, pensou ela. “Vou ser menos egoísta. Vou me aproximar mais das pessoas. Vou voltar a falar com a minha irmã. Vou...”

E então um riso seco, irônico, rasgou-lhe os lábios. Era sempre assim, todo santo ano a mesma coisa. A “Crise do Natal”. Ficava melancólica, refletia languidamente sobre sua vida, chegava às mesmas conclusões que então chegara, planejava mudanças, embebedava-se. E, no ano seguinte, continuava exatamente igual. Arrogante, sarcástica, egoísta. Sozinha.

Abriu outra garrafa de champanhe e bebeu quase todo o conteúdo de uma vez só, pensando que daquela vez seria diferente. No ano seguinte ela seria, sim, uma nova pessoa e aquela seria realmente a sua última crise de Natal.

Adormeceu ali mesmo, no meio da sala, rodeada de garrafas vazias e cigarros apagados.

...

No dia seguinte, comprou um cachorro.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Comunicado: Procura-se Uma Inspiração

Prezados leitores,

Minha Inspiração já começou sua farra de Ano Novo e está por aí, provavelmente jogada em alguma sarjeta, bêbada demais para sequer cogitar a possibilidade de voltar para casa.

(Ou seja: estou passando por um terrível período de bloqueio criativo.)

Peço desculpas aos frequentadores assíduos - se é que estes existem - e solicito encarecidamente que, caso algum de vocês aviste uma musa de cabelos coloridos e óculos escuros entornando garrafas de vinho e gritando impropérios linguísticos no meio-fio, por favor, mantenha uma distância segura da mencionada figura e, assim que possível, entre em contato com esta que lhes escreve.


Atenciosamente,
Caranguejo Excêntrico.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A Caminhada (ou A Senhora De Vestido Amarelo)

A senhora de vestido amarelo preparava-se para sair. Calçou demoradamente seus sapatos marrons, procurou um chapéu que combinasse com o cinto, deu comida para seus três gatos gordos e apanhou as chaves de casa.

Estava entediada. Havia caído feio na cozinha semana passada por causa de um tapete mal colocado e o médico precisou proibi-la de sair de casa por pelo menos dez dias. Batera os joelhos. Graças a Deus não quebrara nada, mas deveria ficar de repouso e não abusar das juntas até que suas pernas não estivessem mais se parecendo com dois rolinhos gordos de massa de pão.

Olhou para as pernas. Ainda estavam bem inchadas, mas a dor era bastante suportável. E, de qualquer forma, não aguentava mais ficar dentro de casa. Sua única distração naquela semana havia sido caminhar do quarto até a sala, cansar-se terrivelmente com os programas televisivos, tentar sem sucesso aprender a usar o tal do computador com internet que sua sobrinha havia lhe dado e resmungar com os seus gatos.

Acordou aquele dia decidida a sair para caminhar. Visitaria sua amiga Selma, que vendia flores em frente ao cemitério. Conversariam sobre o tempo, a família e a morte e depois tomaria um café na padaria do seu Félix. Ele lhe contaria todos os acontecimentos dos últimos dias e ela voltaria alegre pela rua dos pinheirinhos bonitinhos.

Olhou pela janela. Talvez chovesse. Era bom levar um guarda-chuva.

O telefone tocou. Contrariada, a senhora atendeu-o. Era sua filha. Ligou para perguntar se estava tudo bem, se as pernas ainda doíam muito, se ela estava repousando como o médico mandou. Sim, não, sim. Não, ela não iria sair por aí batendo perna como sempre. Sim, sim, um beijo, tchau.

"Filhos, comportam-se como se fossem eles os pais, depois que ficamos velhos", pensou ela, rindo.

Trancou a porta da frente assobiando uma valsinha de quando era adolescente e esperou o elevador por quase cinco minutos, até lembrar-se de que o aparelho estava quebrado mais uma vez.

Aquilo seria um grande empecilho para sua caminhada. Será que ela conseguiria descer os três andares de escadas até o piso térreo? Pior: será que ela conseguiria subir de volta os três andares de escada até o seu apartamento?

Pensou por alguns instantes e deu de ombros. Faria uma parada estratégica na portaria quando chegasse, sentaria um pouco nos sofás para visitantes, conversaria com as faxineiras e depois subiria, descansada.

Desceu as escadas reclamando um pouco das pernas e muito do síndico e disse bom dia ao porteiro do prédio, que a ignorou, como sempre. Quando abriu as portas de vidro do hall de entrada, porém, notou que chovia. Torrencialmente. E ela havia esquecido o guarda-chuva. Não fosse o telefonema da sua filha para distraí-la, ela teria se lembrado de apanhá-lo. Agora não conseguiria subir para buscá-lo, suas pernas não aguentariam. E ela não confiava naquele porteiro novo para pedir a ele que entrasse em sua casa.

Frustrada, a senhora de vestido amarelo sentou-se no sofá para visitantes e apoiou a cabeça nas mãos. Olhou em volta. Ninguém com quem conversar, a não ser o porteiro novo que fazia questão de fingir que ela não estava ali.

Com um suspiro, pôs-se a observar a rua.

Havia um menino no meio da chuva. Era mais um borrão molhado e colorido do que um menino. Parecia ser o filho da Roberta, do duzentos e dois. E ele corria pela rua, pulava nas poças de água, abria os braços. E sorria. Sorria alegremente aquele sorriso que somente as crianças sabem sorrir.

A senhora levantou-se bem devagar e aproximou-se da soleira da porta. Lembrou-se de quando era menina e morava no sítio. Em dias de chuva de verão, ela e seu irmão costumavam apostar corrida molhada pelo gramado. Tinham consigo todas as verdades do mundo. A sensação era tão boa que a lembrança fê-la sorrir instantaneamente.

Então o menino parou bem em frente a ela e, rindo, fez sinal para que fosse até ele.

"Vem, dona Zuleica!" gritou ele "A chuva tá ótima!"

E ela foi. Sem pensar. Apenas caminhou em direção à chuva. Adentrou a cortina prateada de água gelada hesitante, com os passos trôpegos dos joelhos doloridos, mas envolvida por uma felicidade há muito tempo não sentida. A caminhada daquele dia rendera muito mais do que o esperado. De olhos fechados, deixou que a chuva escorresse pelo rosto e sorriu. Sorriu contente aquele sorriso que somente as crianças sabem sorrir.

- Tinha de volta consigo todas as verdades do mundo.

...