segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A Caminhada (ou A Senhora De Vestido Amarelo)

A senhora de vestido amarelo preparava-se para sair. Calçou demoradamente seus sapatos marrons, procurou um chapéu que combinasse com o cinto, deu comida para seus três gatos gordos e apanhou as chaves de casa.

Estava entediada. Havia caído feio na cozinha semana passada por causa de um tapete mal colocado e o médico precisou proibi-la de sair de casa por pelo menos dez dias. Batera os joelhos. Graças a Deus não quebrara nada, mas deveria ficar de repouso e não abusar das juntas até que suas pernas não estivessem mais se parecendo com dois rolinhos gordos de massa de pão.

Olhou para as pernas. Ainda estavam bem inchadas, mas a dor era bastante suportável. E, de qualquer forma, não aguentava mais ficar dentro de casa. Sua única distração naquela semana havia sido caminhar do quarto até a sala, cansar-se terrivelmente com os programas televisivos, tentar sem sucesso aprender a usar o tal do computador com internet que sua sobrinha havia lhe dado e resmungar com os seus gatos.

Acordou aquele dia decidida a sair para caminhar. Visitaria sua amiga Selma, que vendia flores em frente ao cemitério. Conversariam sobre o tempo, a família e a morte e depois tomaria um café na padaria do seu Félix. Ele lhe contaria todos os acontecimentos dos últimos dias e ela voltaria alegre pela rua dos pinheirinhos bonitinhos.

Olhou pela janela. Talvez chovesse. Era bom levar um guarda-chuva.

O telefone tocou. Contrariada, a senhora atendeu-o. Era sua filha. Ligou para perguntar se estava tudo bem, se as pernas ainda doíam muito, se ela estava repousando como o médico mandou. Sim, não, sim. Não, ela não iria sair por aí batendo perna como sempre. Sim, sim, um beijo, tchau.

"Filhos, comportam-se como se fossem eles os pais, depois que ficamos velhos", pensou ela, rindo.

Trancou a porta da frente assobiando uma valsinha de quando era adolescente e esperou o elevador por quase cinco minutos, até lembrar-se de que o aparelho estava quebrado mais uma vez.

Aquilo seria um grande empecilho para sua caminhada. Será que ela conseguiria descer os três andares de escadas até o piso térreo? Pior: será que ela conseguiria subir de volta os três andares de escada até o seu apartamento?

Pensou por alguns instantes e deu de ombros. Faria uma parada estratégica na portaria quando chegasse, sentaria um pouco nos sofás para visitantes, conversaria com as faxineiras e depois subiria, descansada.

Desceu as escadas reclamando um pouco das pernas e muito do síndico e disse bom dia ao porteiro do prédio, que a ignorou, como sempre. Quando abriu as portas de vidro do hall de entrada, porém, notou que chovia. Torrencialmente. E ela havia esquecido o guarda-chuva. Não fosse o telefonema da sua filha para distraí-la, ela teria se lembrado de apanhá-lo. Agora não conseguiria subir para buscá-lo, suas pernas não aguentariam. E ela não confiava naquele porteiro novo para pedir a ele que entrasse em sua casa.

Frustrada, a senhora de vestido amarelo sentou-se no sofá para visitantes e apoiou a cabeça nas mãos. Olhou em volta. Ninguém com quem conversar, a não ser o porteiro novo que fazia questão de fingir que ela não estava ali.

Com um suspiro, pôs-se a observar a rua.

Havia um menino no meio da chuva. Era mais um borrão molhado e colorido do que um menino. Parecia ser o filho da Roberta, do duzentos e dois. E ele corria pela rua, pulava nas poças de água, abria os braços. E sorria. Sorria alegremente aquele sorriso que somente as crianças sabem sorrir.

A senhora levantou-se bem devagar e aproximou-se da soleira da porta. Lembrou-se de quando era menina e morava no sítio. Em dias de chuva de verão, ela e seu irmão costumavam apostar corrida molhada pelo gramado. Tinham consigo todas as verdades do mundo. A sensação era tão boa que a lembrança fê-la sorrir instantaneamente.

Então o menino parou bem em frente a ela e, rindo, fez sinal para que fosse até ele.

"Vem, dona Zuleica!" gritou ele "A chuva tá ótima!"

E ela foi. Sem pensar. Apenas caminhou em direção à chuva. Adentrou a cortina prateada de água gelada hesitante, com os passos trôpegos dos joelhos doloridos, mas envolvida por uma felicidade há muito tempo não sentida. A caminhada daquele dia rendera muito mais do que o esperado. De olhos fechados, deixou que a chuva escorresse pelo rosto e sorriu. Sorriu contente aquele sorriso que somente as crianças sabem sorrir.

- Tinha de volta consigo todas as verdades do mundo.

...

Um comentário: