Ele
estava se divertindo, não fosse o fato do absinto estar quase no
fim. Ou talvez fosse justamente esse o motivo de estar se divertindo.
Com os
olhos já meio embaçados, olhou em volta. À luz pálida dos
candelabros negros pôde ver a decoração lúgubre do bar. Carpetes
vermelhos puídos, cortinas de veludo cor de vinho, mesas de madeira,
uma lareira acesa. Um piano.
Piscou.
Um piano? Podia jurar que não havia aquele piano antes.
Balançou
a cabeça e olhou para a garrafa quase vazia de absinto. Será que já
teria passado da conta?
Dando
de ombros sorveu outro grande gole. Enquanto o líquido descia
queimando-lhe a garganta, a imagem daqueles cintilantes olhos negros
apareceu em sua mente.
Sorriu.
O que será que ela havia visto nele? Um cara comum, magrelo, de
cabelos claros mal-cortados e olhos castanhos. Comum. Maçantemente
comum. E ela, oh, ela era deslumbrante! Enormes cabelos negros e
cacheados, pele branca, corpo esguio e olhos – oh, aqueles olhos! –
olhos tão pretos que pareciam sugá-lo para dentro deles, como
verdadeiros buracos negros.
Vê-la
em sua mente fê-lo perguntar-se onde ela estaria. Sim, porque tinha
certeza de que ela havia ido até lá com ele. Aliás, fora ela que
indicara o lugar e quem estava pagando a conta. Ele não se
arriscaria numa garrafa de absinto se o dinheiro saísse de seu
próprio bolso.
Sorriu
novamente. Sim, estava se divertindo. Nunca uma mulher como aquela o
havia convidado para sair, principalmente fazendo questão de pagar a
conta. Talvez fosse por isso que não havia reparado no piano. É,
talvez fosse isso.
Espreguiçou-se e
ergueu os olhos para procurá-la. Ficou espantado ao ver que não
havia ninguém no bar a não ser ele. As imagens estavam um pouco
difusas, é verdade, mas ainda conseguia enxergar com uma certa
nitidez. Não havia mais ninguém.
Achou
melhor procurar alguém. Será que o bar havia fechado e haviam se
esquecido de lhe avisar? Não, óbvio que alguém teria cobrado a
conta e o expulsado de lá a vassouradas quando descobrissem que não
tinha um tostão e que sua acompanhante sumira.
Levantou-se
com dificuldade. Um ruído ao longe chamou sua atenção. Seriam
passos?
Olhou
à sua frente e distinguiu sombras esgueirando-se pelos cantos das
paredes de pedra até o piano.
Sufocou
um grito.
O
piano, de novo!
Calma,
devia manter a calma. Aquilo era apenas coisa da sua imaginação.
Havia bebido demais, era isso. Respirou fundo e, cambaleando, pôs-se
a caminhar em direção à saída.
Acordes
terrivelmente belos pegaram-no de surpresa a dois passos da porta.
Estacou, o coração aos pulos. Virou-se lentamente. Aquilo não era
conseqüência da garrafa de absinto seca, não podia ser. A música
era linda demais; harmônica, hipnótica. Real.
Um
vulto negro debruçava-se sobre as teclas do piano, graciosamente
tocando a melodia mais bela que ele já havia escutado. Estava
hipnotizado.
Ficou
o que lhe pareceram horas ali, parado, apenas ouvindo.
Subitamente,
porém, tudo ficou em silêncio. A figura do piano voltou-se
lentamente em sua direção, permitindo-lhe então distinguir a face
pálida, os cabelos negros cacheados e aqueles olhos escuros que
tanto o fascinavam.
“Ora,
mas é ela!” exclamou. Sorrindo, tentou tropegamente aproximar-se
dela. Não chegou a dar dois passos quando ela levantou-se em um pulo
e graciosamente parou ao seu lado, com uma velocidade incrível.
Esfregou
os olhos. “Como ela fez isso?” Piscou. Estavam muito próximos.
“Isso no canto da boca dela é... não... mas é tão vermelho...
parece... ora, francamente, homem, você precisa parar de beber!
Daqui a pouco vai pensar que ela tem caninos grandes e olhos...”
Piscou novamente. “Olhos negros fascinantes...”
A
música do piano recomeçara, mas ele não havia percebido. Não
conseguia pensar em mais nada, exceto nos olhos muito negros que
estavam sorrindo à sua frente.
Ela
aproximava-se cada vez mais. Sentia sua respiração quente e pesada
chegando cada vez mais perto. Agora poderia até contar quantos
cílios havia em cada uma das pálpebras bem delineadas dos olhos
dela.
Os
lábios encostaram-se.
Ela
beijou-o demoradamente na boca; beijou-lhe as bochechas, o pescoço.
Ele
mal podia respirar. Sabia o que estava por vir. Estava certo, não
era efeito do absinto. Só mais alguns minutos...
Uma
sensação tal qual ele nunca havia sentido antes invadiu-lhe o
corpo. Uma sensação de êxtase nunca imaginada, deliciosamente
dolorida, terrivelmente doce.
Depois não sentiu mais
nada.
...
(Esse conto é de 2005, eu acho - época em que eu lia desesperadamente as Crônicas Vampirescas da Anne Rice XP)
Vampiros, sempre os vi como seres que para viver sugavam o sangue daqueles aos quais presenteavam com a vida eterna e, vida, não pode ser uma maldição. Belo texto!
ResponderExcluirÉ incrível como nossos estilos eram absurdamente parecidos quando líamos Anne Rice - mesmo antes de nos conhecermos. Até perceber que a mulher era uma vampira e que este conto provavelmente era antigo, eu tive a mais estranha sensação do Universo, como se estivesse lendo um texto meu que eu sabia que nunca tinha escrito.
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