sexta-feira, 11 de maio de 2012

Faz parte, tá ligado?


JR : The Tree : Favela do Morro da Providência, Rio de Janeiro (RJ), Agosto 2008.

A gente mora ali, tia. É, ali, no barraco azul. Não, aquele azul calcinha ali. Foi meu tio que pintou. É, atrás da onde os menino tão empinando pipa, do lado do córrego, tá ligada? É, esse córrego nojento aí. Ih, tia, isso tá fedendo desde sempre. E esse cheiro não é nada perto do que fica quando é verãozão, viu? Ah, depois de um tempo cê acostuma. Faz parte.

Água encanada? Vixe, tia, que ideia, mano! Não temos nem o troço de tratar esgoto, nem tiozinho pra vim pegar o lixo, nem nada disso, não. Os da gravata até diz que vai vim aqui pra botar umas parada, mas só lembra que nós existe quando tá perto de ter que votar, tá ligado? Aí é aquele auê todo, saca, com os político tudo subindo aqui cheio de pompa pra apertar as mão da galera, pegar as criancinha no colo, entregar as cesta básica e dar aquelas camiseta com foto que as tia usa pra limpar as casa das madame, tá ligado? Eles fica dizendo que é pra nós votar neles que nós vai  viver melhor e aquelas putaria toda. Mas nunca melhora, né? Eles ganha e faz de conta que nós não existe de novo, que nem todo mundo.

Aqui é assim desde sempre, tia. Desse jeito, como se ninguém visse que nós existe, saca? Parece até que os cara importante que anda do outro lado da rua todo arrumado e cheio de fita não consegue ver nós, não. Eles finge que não vê, né? Eu, se fosse eles, podendo vê só coisa linda feito os gringo de Ferrari, as novinha de biquíni e o Copacabana Palace não ia querer ver umas coisa como essa aqui, não. Quem é que ia querer vê gente suja e fodida como nós? Só você, mesmo, tia. Mas você pode ir embora quando quiser, né, tia, voltar pra sua casa bacana com elevador e ar-condicionado. Nós não.

Ah, eu vou pra escola sim, né, tia? Minha mãe diz que tem que ir pra não cair no papo dos bandido, porque o que mais tem aqui é traficante querendo os moleque de menor pra fazer rolê pra eles, saca? Aliás, você me lembra ela, tia. A minha mãe. O cabelo preso parece. E ela também diz pra mim tomar cuidado, manja, porque os mano aqui pensa que é vida fácil esses rolê de paranga, que é só levar uns corre e ficar de boa com a fita, mas se você não fica esperto acaba indo trocar uma ideia com o diabo antes dos vinte, tá ligado? Vira e mexe tem neguinho tomando tiro por aí. Uma pá de colega meu já embalou com pipoco de trafica ou de coxinha, tá ligada? Mas é que é foda tentar outro rolê, saca, tia, então você se acostuma a ver os maluco estirado na rua ou com uns furo de trabuco na mão e pensa que da próxima o presunto pode ser você. Faz parte, né, tia, a gente vive ou morre do jeito que dá.

Saca, tia, na real, na real mesmo, o que eu queria era poder fazer as coisa que os filhinho de bacana faz, tá ligada? Nem só ter as coisas que os boyzinho tem, manja, isso seria muito louco, também, poder jogar uns vídeo-game irado, né, mas eu queria era poder viver, mesmo, saca, não assim do jeito que nós vive aqui. Isso aqui não é vida não, tia. Eu queria era poder ficar de boa na lagoa, só indo pra escola, pra aula de inglês, de futebol, de qualquer coisa, saca, e aprender umas parada louca aí numa hora, tá ligada, tipo, que eu até curto uns role das história aí, dos português, dos nego que escrevia uns livro doido, manja, e poder conhecer uns lugar legal, e comer pizza de noite, tá ligada?

Deve ser muito louco poder pensar no futuro de boa, né, sem ter que ficar esperto pra ver se você vai tá vivo amanhã. Mas a gente tem que fazer os corre pra sobreviver, saca, senão fica sem nada. E as pessoa ainda joga tudo a culpa na gente, manja, diz que nós é tudo vagabundo, que queremos vida fácil, que somos uns trombadinha de bosta. Mas é difícil pra caralho, saca, tia. Quem diz que todo mundo pode mudar de vida com certeza não nasceu nas quebrada. Ou, se nasceu, deu sorte de jogar bem uma pelada e ser contratado por um time foda, que na real é a única coisa que dá pra nós fazer pra sair daqui.

Eu não quero me enrolar mais pra frente, saca, tia, virar bandido e morrer antes dos trinta. Acabei de fazer treze anos, manja? Mas é foda, tá ligado?, eu sei que quando eu for tentar um trampo depois, em qualquer lugar os cara já vai me olhar torto porque eu sou preto e moro no morro. Tipo que nem foi com o meu pai.

Se liga, meu pai morreu numa fita com os coxinha quando eu não tinha nem três anos, ele tava fodido de dívida, não conseguia trampo nem fodendo já tinha mó tempão, aí entrou numas paradas aí pra ver se a gente melhorava os rolê e nem isso adiantou. Terminou com um furo bem no meio da testa. Eu não quero isso pra mim, não, saca, tia. Não tenho sorte, que nem meu pai, nuns pico louco desses eu ia tá varado no primeiro pipoco, igualzinho a ele.

É foda, manja, mas vô vê se consigo sair daqui, fazer uma coisa legal com a minha vida, sei lá. Dizem aí que estudar ajuda, né? Vamos ver. Quem sabe as coisa muda mais pra frente. Quem sabe o olheiro do Flamengo me vê jogando bola, já pensou? Ah, ia ser muito louco. Mas o negócio é ter fé, tia. E vamo que vamo. Faz parte, tá ligado?



(No mês seguinte a mãe do garoto foi executada por uma facção traficante porque seu namorado não havia cumprido um trato. O garoto então entrou para a facção rival procurando vingança e morreu poucos dias depois em um confronto armado com a polícia.)


...

“Em vez de luz tem tiroteio no fim do túnel"

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